“O Brasil é racista, a polícia também”, diz novo ouvidor de SP
Cláudio Aparecido Silva, novo ouvidor das polícias de SP, quer combater o racismo e implantar câmeras corporais em 100% dos batalhões da PM
atualizado
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São Paulo – Militante dos movimentos negro e hip-hop, o novo ouvidor das polícias de São Paulo, Cláudio Aparecido Silva, o Claudinho, de 46 anos, quer combater o racismo e implantar câmeras corporais em 100% dos batalhões de São Paulo.
“Já passei por abordagem abusiva, levei grito e até sofri agressão”, diz o novo chefe da Ouvidoria das polícias Científica, Civil e Militar do estado, em entrevista ao Metrópoles.
Filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT) desde o fim da década de 1990, Claudinho também espera se aproximar de deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) para tratar de políticas de segurança.
“Não vou ter nenhum pudor de dialogar com a bancada da bala”, afirma Claudinho. “Se for necessário, eu suspendo minha filiação.”
Leia abaixo a íntegra da entrevista.
Você é da periferia de São Paulo e chegou a viver em situação de rua. Pode contar um pouco mais da sua infância?
Nasci na Favela Monte Azul (zona sul de São Paulo). Minha mãe é negra, semianalfabeta e foi abandonada pelo meu pai quando estava grávida do sétimo filho. Naquela situação, ela pediu para minha avó, que morava em Vitória (ES), cuidar de todas as crianças. A vida era muito dura, o dinheiro não dava. A gente morava na penúltima casa do Morro da Penha, sem energia elétrica. O fogão era à lenha. Fui para escola com 8 anos e fiz a primeira série. Na segunda série, aprontei uma lá e chamaram minha avó para conversar sobre o meu comportamento. Levei um corretivo nesse dia, uma surra mesmo, e isso me pegou tanto que eu fugi de casa. Fiquei um ano morando nas ruas de Vitória, mais ou menos.
Foi nessa época que você passou pela Febem (atual Fundação Casa)?
Eu pedia dinheiro na rodoviária. Uma vez, fui abordado por outro grupo de meninos de rua e eles me roubaram a graninha do dia. Reclamei no posto policial, mas não deram a mínima. Fiquei chateado, terminei xingando o policial e fui parar na Febem. Daí, um juiz da Vara da Infância e Juventude mandou minha mãe me buscar em Vitória.
Como você se tornou militante dos movimentos negro e hip-hop?
Voltei para as ruas em São Paulo, mas não para viver. Cuidei de carro, carreguei sacola, engraxei sapato. Aliás, foi na graxa que iniciei a militância. Na minha clientela fixa, tinham policiais do 11º Distrito Policial (Santo Amaro). O chefe dos investigadores dava uma de brabo, mas cuidava muito de mim. Certo dia, uma pessoa que eu nunca tinha visto apareceu na delegacia e falou: “Nem para isso essa raça serve”. Foi quando minha ficha para o racismo caiu. Com uns 17 anos, eu achei um pedaço de sulfite na rua escrito “Mano, não morra, não mate”. Era uma capanha do Movimento Negro Unificado (MNU) que chamava as pessoas para reunião, toda quinta-feira, no Sindicato dos Radialistas de São Paulo. Quinta era o pior dia da graxa, então comecei a ir. Muita gente frequentava a reunião, inclusive Edi Rock, KL Jay e Mano Brown (rappers dos Racionais MC’s).
Você foi coordenador de políticas para juventude da gestão Fernando Haddad (PT) em São Paulo. Como foi a passagem pela Prefeitura da capital?
Em 2015, o Haddad ia participar de um seminário no Vaticano e a assessoria estava batendo cabeça para dar um presente para o papa Francisco. O papa é um cara preocupado com as transformações sociais e a eliminação das igualdade, então dei a ideia de levar um disco dos Racionais MC’s. O Haddad topou. Liguei para a Eliane Dias, a esposa do (Mano) Brown, e ela falou que em casa tinha o disco “Sobrevivendo no Inferno”, de vinil duplo, usado…
Vocês deram um disco usado para o papa?
Usado, mas autografado (risos). Essa história foi na mesma época da redução de velocidade nas marginais, o Haddad era muito criticado. Quando saiu a história do papa, ele ficou uns quatro dias sem apanhar na imprensa. O próprio Haddad me ligou depois: “Só isso aí já valeu sua passagem pelo governo”.
Como a sua candidatura para a Ouvidoria foi construída?
No ano passado, o movimento de Direitos Humanos me procurou porque o Condepe estava em vias de formar a lista tríplice (com os nomes indicados para escolha do governador de SP). Eles queriam um militante negro, que pudesse qualificar o debate racial e periférico, e a Associação Santos Mártires topou patrocinar a candidatura.
O mandato atual na Ouvidoria expirou em fevereiro e o governo Rodrigo Garcia (PSDB) chegou a dizer que deixaria a escolha para Tarcísio de Freitas (Republicanos), seu sucessor. Você estava esperando ser nomeado agora?
Fui pego de surpresa, já tinha até desencanado da lista.
A nomeação foi publicada na véspera do Natal (24/12). Ninguém do governo ligou?
Nem o Rodrigo Garcia, nem o Tarcísio, nem o capitão Derrite (futuro secretário da Segurança Pública), nem o general Campos (atual secretário), ninguém me ligou. Só quem me ligou foi o Elizeu Lopes (atual ouvidor), para tratar da transição.
Muitas entidades criticam o ouvidor Elizeu Lopes por ter sido pouco combativo no cargo. Como vai ser a sua gestão?
Vamos fazer o papel de mediação. O caminho que a gente quer percorrer é do diálogo com todos e da aliança estratégica com movimentos sociais, mais presente nos cantões de São Paulo. O Jardim Ângela (na zona sul) era um dos bairros mais violentos do mundo até que todo mundo – a dona Maria, o padre, o pastor, os pesquisadores da USP – se juntou para resolver o problema. Esse é o modelo que eu quero seguir.
Tem metas para a Ouvidoria?
Quero construir um TAC (Termo de Ajuste de Conduta), com o Ministério Público, o Tribunal de Justiça e as polícias, para que qualquer pessoa que cometa uma injúria racial responda por racismo. Um argentino não pode chegar a um estádio de futebol em São Paulo, fazer sinal de macaco e só pagar fiança. Isso é urgente. O racismo persiste por conta das injustiças. Outra questão muito importante é reivindicar apoio para acelerar a implantação de câmeras no fardamento de policiais em 100% dos batalhões. Até o momento, os resultados são muito positivos tanto para proteger o policial, que tem sido menos agredido, quanto para a proteção de civis. Depois, a gente poderia até pensar em ampliar para outras corporações.
Só a PM tem mais de 80 mil pessoas e o seu mandato é de 2 anos. Dá tempo?
Acho que não, ainda não sei quantas câmeras já foram implantadas, mas a gente vai brigar. O céu é o limite.
O futuro secretário da Segurança Pública, o capitão Derrite, já declarou que um bom policial deve ter pelo menos três mortes no currículo. É possível que, com esse perfil, a Ouvidoria tenha interlocução com ele?
Sim, eu não desisto da interlocução com ninguém. O capitão Derrite é jovem, tem 38 anos. Embora já tenha o caráter formado, acredito que a visão política não seja definitiva. Vamos abrir espaço para o diálogo. Ele apresenta a perspectiva dele; eu, a minha. Podemos ter uma relação harmoniosa, construtiva e qualificada. A Ouvidoria é justamente esse espaço.
Na Assembleia Legislativa, é comum a bancada da bala fazer ataques à Ouvidoria sempre que aparecem denúncias contra policiais. Como você pretende lidar com isso?
Uma forma de ser combativo, sem necessariamente ferir a corporação, é não generalizar. Sou militante de direitos humanos e acredito que existem mais pessoas boas do que ruins na Polícia Militar, Civil e Técnico-Científica.
O fato de você ser filiado ao PT não pode ser usado para deslegitimar a atuação da Ouvidoria?
Podem usar esse argumento mas, em nenhum momento, pensei em usar a Ouvidoria como instrumento de batalha de posições políticas. O meu partido não está à frente do interesse das pessoas. Se for necessário, eu suspendo minha filiação. Hoje, acho que não precisa. Por conhecer a Alesp, quero criar uma interface com deputados importantes no pensar e na construção das políticas de segurança. Não vou ter nenhum pudor de dialogar com a bancada da bala.
Além do episódio da rodoviária em Vitória (ES), você já precisou da polícia?
Em 2002, estava fazendo campanha no Campo Limpo (na zona sul de SP) e a turma de outro candidato destruiu o nosso material, o que é crime eleitoral. Lógico que eu não ia enfrentar o pessoal sozinho, então liguei para polícia. A viatura veio, mas se negou a ir atrás das pessoas. Ameacei ir à Corregedoria e os policiais me levaram para delegacia. Só saí de lá depois de assinar um desacato à autoridade.
Você ainda mora na Favela Monte Azul. Lá, a abordagem policial segue o mesmo padrão dos Jardins, bairro nobre de São Paulo?
Eu sei que a abordagem não é a mesma, os moradores dos Jardins também sabem. Já passei por abordagem abusiva, levei grito e até sofri agressão mesmo. Na hora de fazer a revista, o cara (policial) chuta a canela ou dá soco nas regiões baixas, de baixo para cima.Já passei por tudo isso. Muito dificilmente um morador da periferia nunca teve algum entrevero com a polícia. O morador dos Jardins, não.
Por que isso acontece?
Há uma série de questões. Por algum tempo, em vez de fazer reciclagem, a forma de punir o mau policial era transferi-lo para a periferia, onde ia trabalhar em rua esburacada e correr risco maior. É a mesma coisa que oferecer um doce fresco na padaria dos Jardins e, quando faltam dois ou três dias para vencer, mandar vender na filial da periferia. A excelência tem que ser em todo lugar.
A estética da pessoa abordada faz diferença para o policial?
Muita, inclusive porque o tirocínio policial é subjetivo. Eu sou do hip-hop, andava de calça larga e fui abordado inúmeras vezes voltando das festas. Hoje, o jovem do funk, com cabelo riscado, óculos Juliet e aparelhinho no dente, sofre o mesmo. A estética é determinante, por isso precisamos trabalhar em protocolos que ofereçam ferramentas melhores aos policiais.
A polícia é racista?
Não tenho dúvidas. A Polícia Militar é uma instituição muito grande, deve ser a maior empregadora de pessoas negras no estado de São Paulo, mas reflete aspectos da nossa sociedade. As instituições precisam reconhecer a existência do racismo dentro delas para enfrentar o problema da forma correta. Sem saber a doença, você não acerta a dosagem do remédio.
E qual seria a receita?
O primeiro passo é reconhecer. A polícia é racista, a prefeitura é racista, o governo é racista; a Assembleia Legislativa, a OAB, o PT, o PSDB, o MDB, as grandes corporações… O Brasil é racista, naturalmente todas as instituições estão contaminadas. A partir disso, é possível trabalhar em campanhas de combate ao racismo institucional e desconstruir comportamentos racistas. Quero que a PM seja tão ovacionada na periferia quanto é o professor. O professor é autoridade, todo mundo chama de senhor. Hoje, o policial precisa obrigar o jovem a chamá-lo de senhor. Esse trabalho de conscientização passa por entender que o PM não é herói. É um garantidor de direitos e da vida das pessoas.
Também é papel da Ouvidoria receber queixas dos policiais. Como você pretende atuar nessa frente?
A questão salarial é fundamental para a garantia de proteção do policial. Quando ele ganha um bom salário, não precisa se desdobrar na segunda jornada, o bico, então não se estressa e tem tempo de descanso. Também temos recebido denúncias de que no (presídio militar) Romão Gomes familiares de policiais têm sofrido com revista vexatória, então quero acompanhar. Não podemos ter policiais injustiçados, expulsos sem direito de defesa. Vamos ouvir todas as queixas com carinho.