Fã de literatura, delegado registra B.O. em prosa na Grande SP
João Batista Blasi, de 45 anos, transforma históricos criminais em narrativas empolgantes e estilosas no 4º DP de Guarulhos
atualizado
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São Paulo – Os textos dos boletins de ocorrência da Polícia Civil são, de forma geral, muito parecidos no estilo usado para descrever o histórico dos crimes.
Mas basta ler as primeiras linhas de um B.O. redigido pelo delegado João Batista Blasi, do 4º DP de Guarulhos, na Grande São Paulo, para notar que os casos são narrados em forma de causos, assemelhando-se à literatura.
Não fosse um documento oficial, o texto poderia muito bem ser confundido com uma ficção.
Nascido na capital paulista, há 45 anos, Blasi ingressou na Polícia Civil em 2009, ano em que começou a trabalhar no 4º DP de Guarulhos, no bairro dos Pimentas, de onde nunca saiu.
O distrito, por se localizar em uma região periférica, concentra casos pitorescos, sendo uma boa fonte de matéria-prima para os exercícios literários do policial, com os quais registra os dilemas da vida real.
“Quando ingressei na polícia eu já gostava de escrever. Mas o juridiquês burocrata, a forma repetitiva de escrever [boletins de ocorrência], no meu sentir isso, até hoje, não agrada. O português é uma língua tão rica, com tantos recursos retóricos, que permite um estilo mais subjetivo. Até hoje defendo esse tipo de perspectiva, desde que faça em tempo razoável para o plantão judiciário, que demanda velocidade. Tendo-se instrumental para fazer no limite temporal, acho perfeitamente razoável”, conta Blasi.
Blasi ressaltou não ser um literato frustrado, que compensa nos boletins de ocorrências suas ambições beletrísticas. Ele ressaltou ainda não serem em todas as ocorrências que imprime “um tom romanesco”. “Dou uma roupagem mais romantizada quando o caso pede, sempre respeitando as pessoas envolvidas”, explica o delegado.
Blasi também afirma ser um amante da boa literatura, mas como leitor, revelando já ter sido procurado, por uma grande editora, para publicar uma coletânea com os seus melhores registros de crimes. Isso não ocorreu, acrescentou, em decorrência da falta de tempo para organizar seus casos preferidos.
Um caso natalino?
Em 24 de novembro deste ano, há exato um mês para a véspera para o Natal, além do dia em que o Brasil estreou na Copa do Mundo do Qatar, Blasi precisou registrar um boletim de ocorrência de embriaguez ao volante.
O suspeito, de 60 anos, se assemelhava a um Papai Noel, por causa da barba branca e rosto avermelhado, por consequências alcoólicas.
No registro do caso do “Papai Noel”, Blasi rasgou o verbo. O caso começa quando o suspeito ultrapassa uma viatura da PM, chamada no relato de “barca.”
“O motorista fazia menção de querer ultrapassá-los. Pelo retrovisor, via-se que o motorista tinha uma longa, viçosa, mas mal cuidada barba encanecida. De repente e de abrupto, o barbudo precipitou-se pela lateral, ultrapassando a barca. Claro que isso, de per si, não suscitaria qualquer melindre; ocorre que ao fazê-lo, o barbudo resvalou no para-lama esquerdo frontal. Ora, isso sim pôs os milicianos sobressaltos. E, convenha, com razão”, diz trecho do B.O.
O motorista é abordado pelos policiais. Por estar nitidamente embriagado, ele tenta três vezes sair do carro, até que consegue. O êxito do “Noel”, cuja bebedeira é detectada pelos policiais, ficou registrado assim: “Ao lado de fora, meio trepidante e com espasmódicos frêmitos, ele, alvíssaras, envergou o espinhaço, mas não muito. Já naquele momento, via-se. Sua barriga saliente, sua barba desgrenhada, seu olhar apertado, e tudo o mais constante davam-lhe a feição de um terno Papai Noel. Mas foi só até ele, indagado, abrir a boca. Ao fazê-lo, sem que um qualquer som saísse, o hálito pútrido, numa mistura de repastos antigos e café requentados e, sobressaindo, um cheiro de álcool a empestar o ambiente.”
O motorista, por isso, foi levado ao 4º DP de Guarulhos, onde foi indiciado por embriaguez ao volante.
Dentro do distrito, o “Papai Noel mefistofélico”, como consta no registro policial, foi alojado em uma carceragem e, nem bem entrou nela, dormiu.
Enquanto o suspeito “ingressou num sono, cujo ronco sobressaltava seus colegas de cela”, o delegado constatou ser ele, o Noel, reincidente no crime a ele imputado. Foi-lhe, então, aplicada uma fiança de R$ 2 mil. Após isso “o trenó, ops, perdão, o veículo fora entregue à pessoa habilitada”, destaca o registro do delegado.
Referências e indicações
Entre as principais influências do delegado, e indicações de leitura, estão os escritores brasileiros Nelson Rodrigues – apontado como o seu favorito – Graciliano Ramos e Machado de Assis. Ele também destaca o cubano Pedro Juan Gutiérrez.
Fora da literatura, Blasi tem como autor de cabeceira o biólogo evolutivo e escritor britânico Richar Dawkins.
Blasi nunca teve problemas com superiores por escrever de forma diferente alguns de seus boletins de ocorrência. Ele acrescentou que, pelo contrário, é conhecido por isso no meio policial. “O pessoal, gostando ou não, admite que sou um cara que tenho um bom domínio do português”, afirma o delegado.
É ler para crer.