De faro fino à mordida brava: conheça a “tropa canina” da PM paulista
Metrópoles acompanhou um dia de treinamento da “tropa canina” da PM paulista, no Canil da Polícia Militar, na zona norte de São Paulo
atualizado
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São Paulo – Carícias com cotonetes na barriga e uma brincadeira de “caça-mamilos” das mães já fazem parte da rotina dos filhotes do Canil da Polícia Militar de São Paulo, na zona norte da capital, antes mesmo de os cães abrirem os olhos, no terceiro dia de vida.
O que parece pura diversão é, na verdade, o início de um minucioso treinamento para formar um cão policial que, em menos de dois anos, estará nas ruas ajudando a PM paulista a encontrar drogas, explosivos e pessoas desaparecidas.
O Metrópoles passou uma manhã em companhia de treinadores e de cães policiais, de várias gerações, no Gabinete de Treinamento e Departamento de Cães do 5º Batalhão de Choque da PM, e registrou como a “tropa canina” é treinada para agir.
Desde cedo, os cães são estimulados a desenvolver capacidades de adaptação a diferentes ambientes, independência — e a não se acomodarem. Os exercícios ajudam os treinadores da PM a identificar o perfil de personalidade de cada um dos pequeninos, que ainda cheiram leite.
Só no canil da capital, o efetivo atual é de 35 cães policiais. Todos os animais são avaliados diariamente por um veterinário, além de contar com uma dieta hiperproteica. O canil também oferece cursos de capacitação a outros batalhões, para que mantenham um padrão de atuação dos cães dos outros 28 canis espalhados pelo estado.
Seleção
A seleção dos cães policiais começa logo nos primeiros dias de vida dos filhotes. As raças com as quais a PM paulista mais trabalha são de pastores-belgas-malinois, alemães e holandeses. Na “tropa canina” da capital, a maioria é formada por belgas-malinois.
“Essas raças têm como característica uma predisposição genética ao trabalho, com um ímpeto maior de estimulação predatória. São cães mais robustos, mais fáceis de adestrar. Dentro dessas raças, há um maior número de indivíduos com aptidão para ser cão policial”, explica o tenente Sidnei Sampaio, comandante do Gabinete de Treinamento e do Departamento de Cães do 5º Batalhão.
Os pequenos convivem por pouco tempo entre si, para que não ocorra a imposição natural de alfas, que subjugam cães mais fracos, como ocorreria em outro contexto. “Trabalhamos para que todos os nossos cães se sintam alfa. Para isso, eles deixam de conviver entre si a partir de 30 dias”, afirma o tenente.
Assim que são separados, os pequenos são levados para o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Reprodução Canina, onde permanecem até por volta dos seis meses de vida.
Durante este período, eles aprendem a lidar com ambientes adversos, barulho e a se virarem sozinhos. Para isso, precisam procurar a própria comida, em meio a obstáculos (veja abaixo). Das três refeições diárias, duas são em um ambiente que une diversão e sobrevivência.
“Quando eles interagem com a pista de obstáculos, podemos observar se são bons de faro, de mordida, ou se contam com ambas as características”, diz Sampaio.
Após os seis meses, os filhotes são transferidos para o batalhão, onde começam a ser treinados de acordo com seus pontos fortes.
Cães que demonstrem ser medrosos ou desinteressados, ou seja, que não gostam de procurar ou morder as coisas, são dispensados da carreira militar e disponibilizados para adoção.
Treinamento
Os filhotões bons de faro são estimulados, em um primeiro momento, a procurar o próprio cheiro, que fica impregnado em um brinquedo exclusivo do cachorro. Diferentemente de um cão doméstico, que interage com vários objetos para se divertir, o cachorro policial aprende que há somente um único e exclusivo brinquedo para ele. Isso é feito para que ele não se disperse na rua, onde há uma variedade de distrações.
O brinquedo é o grande objeto de desejo dos cachorros que, para ganhar o direito de mordê-lo e de se divertir com ele, aprendem a encontrar drogas, explosivos, pessoas e a conter suspeitos.
Para encontrar drogas, a PM usa pequenas porções, hermeticamente embaladas dentro de tubos de PVC, que impedem qualquer tipo de contato do animal com o entorpecente. Isso também é feito com os cheiros de explosivos inativos, usados no treinamento.
“É bom frisar que há uma lenda de que os cães farejadores ficam viciados em droga. Isso é uma grande falácia. Usando essa lógica, então, o cão que encontra explosivos é viciado em explosivos e o que encontra pessoa é viciado em pessoas? O cão é viciado em uma coisa: na brincadeira. É compulsivo pela bola dele e pelo condutor [parceiro]. Ele para o que estiver fazendo, para obter isso”, afirma o oficial do canil.
Os cães com aptidão para o policiamento ostensivo são treinados para morder de forma a machucar o mínimo possível o suspeito. Seus alvos de ataque são braços e pernas.
O tempo médio para um cachorro estar apto a ir às ruas, como em um estágio, é entre um ano e meio e dois anos de vida. Com essa idade, o cachorro já consegue manter o foco na missão para a qual foi treinado. Entre dois anos e meio e três anos, o cachorro já pode ser considerado um veterano, que só tem olhos e ouvidos para seu parceiro humano.
A reportagem testemunhou a indiferença do estagiário Ghost, de um ano e sete meses, com um gato que caminhava tranquilamente pelo gramado do canil. O pastor-belga-malinois, muito calmo, ficava alerta somente aos comandos e à presença de seu parceiro, o soldado Diego Albuquerque, ignorando o felino.
Missões
Os cães são considerados como policiais pelos PMs humanos. Eles auxiliam, principalmente, na localização de drogas, o carro-chefe dos treinamentos do canil.
Somente em 2022, os cachorros auxiliaram o 5º Batalhão a encontrar 4,5 toneladas de drogas e a prender 89 pessoas, além de fazer varreduras de 197 explosivos.
Do total de drogas apreendidas, 30% resultaram do faro do pastor-belga-malinois Tank, um veterano de quatro anos e nove meses.
Tank foi doado ao canil em 1º de janeiro de 2019 e passou a ser treinado para desenvolver suas aptidões individuais.
Conhecido pela obediência e faro fino, ele farejou 1,3 tonelada de maconha, 820 gramas de cocaína e 310 gramas de haxixe (derivado da maconha) na zona norte paulistana, no Dia das Crianças do ano passado. Ninguém foi preso.
Tank estava acompanhado de seu parceiro, o soldado Bruno Santos, que imediatamente recompensou o pastor com sua tão desejada bolinha de brinquedo. “Nesse dia, ele também ganhou uns petiscos a mais”, diz o PM.
Nascido em 18 de maio de 2018, o cão policial já é o recordista do batalhão. Em um mural destinado aos cães que se destacaram por grandes volumes de apreensões, ele aparece duas vezes. Em 2020, foi responsável por 50% das drogas apreendidas pelo canil.
Aposentadoria
Há três formas para um animal entrar no canil da PM. Uma é pela compra, outra por doação e, a mais comum, pela criação própria. Em 2020, a corporação fechou uma parceria com uma empresa que doou R$ 500 mil ao batalhão. O dinheiro foi usado para comprar dez pastores-belgas-malinois na Europa, usados como matriz para uma nova geração de cães policiais, que já começa a ser treinada na zona norte paulistana.
Assim como os seres humanos, os cães também contam com um período máximo de tempo para prestar serviços e ganhar o direito a uma aposentadoria, mais do que merecida.
Até o ano passado, os cães trabalhavam por oito anos. Caso o animal ficasse doente ou apresentasse alguma mudança comportamental, a aposentadoria era antecipada.
Neste ano, o tempo de serviço aumentou para dez anos. Desde então, a partir dos seis anos, os cachorros passam por uma verificação mais completa, para verificar se continuam aptos a trabalhar. Isso pode durar até uma década, ou não. Vai depender da condição de cada cachorro.
Assim que se aposentam, os cães podem ser adotados. A prioridade de escolha é dada ao policial que por mais tempo trabalhou com o cachorro. Caso ele não possa, algum PM da unidade ganha o direito. Se isso não ocorrer, o que é raro, o animal fica à disposição de qualquer policial militar. Em último caso, há ainda a possibilidade de o cão ir para a casa de alguém que não seja ligado à corporação.
Somente cães com comportamento agressivo, que demandam acompanhamento especializado, acabam em alguns casos fechando seus ciclos de vida no canil, onde são alimentados e recebem toda a atenção e cuidados.