Polícia apura se PM falsificou registro sobre morte de aposentado
Policiais militares informaram que delegado Weider Ângelo, que estava de folga na hora da ocorrência, dispensou necessidade de fazer BO
atualizado
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São Paulo — A Polícia Civil de São Paulo apura se policiais militares fraudaram o registro da ocorrência sobre a morte do aposentado Clóvis Marcondes, de 70 anos, baleado durante uma abordagem no Tatuapé, zona leste da capital paulista, no último dia 7.
Fontes policiais que acompanham o caso afirmaram, em condição de sigilo, que os PMs envolvidos “mentiram” ao dizer que o delegado Weider Ângelo, do 30º DP (Tatuapé), teria dispensado a necessidade de fazer um boletim de ocorrência, junto à Polícia Civil, e orientado que o caso fosse registrado apenas no 8º Batalhão da PM.
De acordo com o inquérito policial militar, ao qual o Metrópoles teve acesso, a ocorrência foi apresentada no 8º BPM às 18h pelo tenente Henrique Pereira da Silva. O registro da ocorrência indica, que antes disso, os PMs teriam consultado o delegado Weider Ângelo. Naquele momento, no entanto, Ângelo nem estava trabalhando — ele só daria início ao seu plantão às 20h.
“Diante dos fatos, foram acionadas as autoridades competentes e certificado delegado de polícia, dr. Weider Ângelo, o qual deliberou que o procedimento e apresentação da ocorrência fosse conduzido pelo SPJMD [Seção de Polícia Judiciária Militar e Disciplina] do 8º BPM”, diz trecho do BOPM obtido pelo Metrópoles.
A 5ª Delegacia Seccional de Polícia da Capital e a cúpula da Polícia Civil apuram a ação dos PMs. As autoridades avaliam a possibilidade de instaurar um inquérito criminal para responsabilizá-los por falsidade ideológica.
“Mentiram e vão responder. Isso tipifica falsidade ideológica. Ele [delegado do 30º DP] assumiu às 20h. Como pode ter dispensado a ocorrência em horário bem anterior? Mentira deslavada”, afirmou uma autoridade da Polícia Civil, em sigilo, ao Metrópoles.
Na semana passada, quando questionada sobre os motivos para os policiais militares não terem registrado um boletim de ocorrência em uma delegacia, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) se limitou a afirmar que “não haveria necessidade” por se tratar de “um crime culposo [sem intenção], cometido por um policial militar em serviço”.
Em nenhum momento a pasta mencionou que, supostamente, um delegado teria dispensado a necessidade de fazer o BO junto à Polícia Civil. Questionada pelo Metrópoles, nesta segunda-feira (13/5), a SSP enviou uma nota com informações já anteriormente divulgadas sobre o caso e disse que não iria se posicionar sobre a suspeita de falsidade ideológica.
O Metrópoles procurou a coronel Adriana Kimie Ogasawara, comandante do 8º BPM, o delegado Weider Ângelo e o delegado Marcos Casseb, títular do 30º DP, para comentarem o caso. Até a publicação desta reportagem, nenhum deles havia dado retorno. O tenente Henrique Pereira da Silva, que apresentou a ocorrência no 8º BPM, não foi localizado. O espaço segue aberto para manifestações.
Homicídio doloso
Horas após a morte de Clóvis Marcondes, o autor do disparo, o 1º sargento Roberto Marcio de Oliveira, foi preso em flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Diante da repercussão do caso, uma investigação foi aberta no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, três dias depois.
Mesmo com os trabalhos prejudicados por causa do atraso decorrente da intervenção da PM, o DHPP reuniu elementos para mudar a tipificação do homicídio para doloso, quando se assume o risco de matar.
A Polícia Civil requisitou as imagens das câmeras corporais dos policiais que participaram da ocorrência para esclarecer detalhadamente como a arma do PM disparou. Testemunhas também serão ouvidas para ajudar a entender a dinâmica da ocorrência.
Versões inconsistentes
No boletim de ocorrência da PM, obtido pelo Metrópoles, os relatos dos policiais que participaram do caso são idênticos. No modelo “copia e cola”, somente o relato do motorista da viatura muda, porque ele fala na primeira pessoa sobre o disparo que matou o aposentado Clóvis Marcondes.
Segundo os três PMs da Força Tática, subordinados do sargento Roberto Márcio de Oliveira, eles avistaram três motocicletas descendo a Rua Itapura, em alta velocidade.
Eles decidiram, então, segui-las “para averiguação”. Durante o acompanhamento, segue o relato dos policiais, uma das motos “virou abruptamente” à direita, sentido Rua Platina. A viatura da Força Tática continuou no encalço da moto, momento em que o veículo suspeito foi parado abruptamente.
“Nessa manobra precisei frear a viatura bruscamente, a fim de realizar a abordagem, momento que ouvir [sic] um estampido”, diz trecho de depoimento do motorista da viatura, identificado como Márcio Roberto Camillo.
Imagens de uma câmera de monitoramento (assista abaixo) mostram que o aposentado caminha pela calçada da Rua Platina no momento exato em que a viatura da PM freia bruscamente, ao lado da moto ocupada pela dupla.
A vítima cai no chão em seguida, ferida com um tiro que atingiu seu rosto. O aposentado morreu no local. Pelas imagens, é possível afirmar que o tiro foi dado enquanto os policiais estavam ainda dentro do carro policial.
Apesar disso, os três PMs que prestaram depoimento para a própria corporação afirmaram “não saber afirmar de onde tinha vindo [o tiro] e nem do que se tratava”.
Crise institucional
Como mostrado pelo Metrópoles, a ausência de registro sobre a morte do aposentado é mais um capítulo das desavenças entre a Polícia Militar e a Polícia Civil do estado de São Paulo.
“É um absurdo, claramente isso é inconstitucional”, disse um delegado da velha guarda da Polícia Civil da capital à reportagem, em sigilo. “Não há discussão. Ainda que o registro sobre a morte seja feito junto à Polícia Militar, é preciso fazer um boletim de ocorrência”.
“Isso acontece em um contexto de tentativa de ampliar os poderes da Polícia Militar. No contexto de nós termos um capitão no comando da Secretaria da Segurança Pública”, complementa o delegado.
“Isso não existe”, disse um delegado da região metropolitana de São Paulo ao Metrópoles. “O policial mata e ele mesmo conclui que o tiro foi acidental? Nunca vi algo assim. Isso impossibilita a investigação, a instauração de inquérito por parte da Polícia Civil. Quem vai dizer se o disparo foi ou não acidental é o delegado, é a equipe de investigação.”
Em nota, a Ouvidoria das Polícias de São Paulo diz que está acompanhando o caso com “crescente preocupação” e que as abordagens policiais “têm apresentado uma escalada que compromete o bom trabalho de policiais comprometidos com a proteção das pessoas em nosso estado”.