PM viu legítima defesa em policiais réus por matar e forjar confronto
Conclusão, que contraria denúncia do MPSP, consta no inquérito policial militar, em relatório assinado pelo comandante da Rota em abril
atualizado
Compartilhar notícia
São Paulo — O inquérito interno da Polícia Militar (PM) sobre a ocorrência que resultou na morte de Allan de Morais, conhecido como “Príncipe”, em 10 de fevereiro, em Santos, concluiu em abril que os agentes envolvidos teriam agido em legítima defesa, contrariando a denúncia apresentada pelo Ministério Público de São Paulo no último dia 18.
Para os promotores, os policiais da Rota Glauco Costa e Diogo Souza Maia teriam manipulado a cena do crime para forjar um confronto com a vítima, que foi alvo de quatro tiros de fuzil e quatro de pistola. Na semana passada, os PMs se tornaram réus.
Tanto os promotores quanto policiais militares responsáveis pelo inquérito da PM tiveram acesso às imagens das câmeras corporais acopladas às fardas. As conclusões, no entanto, foram diferentes.
Enquanto os promotores descreveram como os agentes aparecem nas imagens tapando as câmeras, dando disparos de dentro para fora do carro da vítima e plantando armas no veículo, o relatório da PM sobre as imagens faz uma descrição protocolar, destacando a viatura se aproximando, o corpo da vítima caído e a chegada da ambulância para fazer o resgate.
“Legítima defesa”
O relatório do inquérito policial militar, assinado pelo comandante da Rota, Leonardo Akira Takahashi, em 10 de abril, afirma que, apesar de a ação dos PMs ser enquadrada no artigo 205 do Código Penal Militar (CPM), que corresponde a homicídio, “as provas trazidas aos autos”, apontam que a ação está respaldada pelo inciso segundo do artigo 42.
O dispositivo do CPM diz que “não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa”.
O relatório assinado por Akira Takahashi cita as imagens das câmeras corporais acopladas às fardas de três policiais militares: Glauco Costa, que viria a se tornar réu pelo crime, e Alex Azevedo e Richard Teixeira do Nascimento Santos, também envolvidos na ocorrência.
A câmera acoplada à farda de Diogo Maia estaria descarregada no momento da ocorrência. De acordo com o MPSP, ele teria sido o responsável por se debruçar na janela do carro da vítima e efetuar disparos de dentro para fora do veículo, simulando uma troca de tiros. Isso teria ocorrido a partir das 17h 39 minutos e 6 segundos.
A ação não foi captada pela câmera operacional de Glauco, que inclinou o peito para o chão no momento dos disparos, de modo que não fosse possível filmar o interior do carro.
No entanto, na câmera acoplada à farda do PM Luís Antonio, que estava distante, seria possível ver Diogo mexendo no interior do veículo e forjando os disparos, diz o MPSP na denúncia.
Descrição da PM
Cerca de duas semanas antes do relatório, em 27 de março, o 1º tenente Matheus Felipe Matos Fonseca, que atuou como escrivão do inquérito, fez uma descrição detalhada das câmeras acopladas às fardas de Glauco, Alex e Richard.
O documento não inclui as câmeras corporais de Luis Antônio, que teria captado os disparos forjados, e de mais de uma dezena de PMs citados pelo MPSP.
No caso da câmera acoplada à farda de Glauco, o documento não menciona o momento em que ele inclina o peito para o chão, supostamente em uma tentativa de obstruir as imagens.
O relatório se limita a dizer que Glauco desembarcou da viatura às 17h38 e, após 10 segundos, começou a efetuar os disparos. Ele teria dado quatro tiros de pistola.
Um minuto depois, diz a descrição da PM, Glauco “se aproxima de uma arma de fogo caída no asfalto”, pega o objeto e o entrega para um policial da equipe.
Na sequência, às 18h01, cerca de 15 minutos depois dos disparos, a câmera de Glauco filma um fuzil no interior do porta-malas do carro da vítima.
Segundo a denúncia do MPSP, o fuzil teria sido plantado. Os promotores dizem que cerca de 10 minutos de a arma ser “encontrada”, o PM Glauco já havia revistado o porta-malas, através do interior do veículo, sem encontrar nada de ilícito. No momento, ele teria tapado a câmera corporal usando a porta do veículo.
Câmeras tapadas por policiais
A descrição feita pelo 1º tenente Matheus Felipe Fonseca não menciona uma série de tentativas por parte dos policiais militares de obstruir as imagens das câmeras corporais, conforme descrito pelo Ministério Público de São Paulo.
Os promotores citam momentos em que os policiais envolvidos na ocorrência colocam a mão na frente do dispositivo e ficam de costas para a cena do crime nos momentos em que a troca de tiros estaria sendo forjada.
Às 17h53, diz o MPSP, um dos policiais, não identificado, chega a caminhar de costas para não captar e vídeo os colegas movimentando o carro da vítima para simular uma colisão.
O policial Richard, segundo os promotores, teria obstruído sua câmera portátil bloqueando a filmagem por mais de meia hora. O PM Diego Aneias ficou com a mão sobre a lente da câmera por mais de 20 minutos ao se aproximar do carro da vítima.
Tribunal do Júri
Em 30 de abril, o promotor de Justiça Militar Marcel del Bianco Cestaro sugeriu que, por se tratar em tese de crime doloso contra a vida praticado contra civis, o caso fosse encaminhado para a Justiça Comum, para ser submetido Tribunal do Júri, o que foi acatado.
O Metrópoles tentou contato com o comandante da Rota, Leonardo Akira Takahashi, mas não conseguiu localizá-lo. O espaço segue aberto para manifestação. Procurada, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) não se manifestou.
“Agiram para matar”
Na denúncia apresentada pelo MPSP, os promotores afirmam que, mesmo após a vítima colaborar com a abordagem, o policial Diogo Souza Maia foi até a janela do veículo e deu quatro tiros de fuzil em sequência. Com Allan baleado, o carro teria andado alguns metros e colidido com a viatura. Na sequência, dizem os promotores, Glauco Costa também atirou quatro vezes.
“Com o tiro de fuzil, em razão da multiplicidade e gravidade dos ferimentos, não havia como a vítima manobrar e acelerar o carro para fugir do local, tampouco manusear uma pistola para disparar, em meio ao confronto, contra os policiais”, diz a denúncia.
“Por volta das 17h39min [um minuto após a ordem de parada], a vítima já havia sido atingida, ao todo, por seis tiros que causaram a fratura de ossos da face, fratura de arcos costais, fratura exposta de clavículas direita e esquerda e fratura de braço direito e esquerdo.”
Allan de Morais
Allan de Morais Santos, de 36 anos, foi morto enquanto voltava do trabalho, no Jabaquara Esporte Clube. Momentos antes, foi filmado em uma partida de futebol no campo do clube, que disputa a série A4 do Campeonato Paulista.
O homem tinha passagem pela polícia por tentativa de homicídio e associação criminosa. Ele chegou a ser preso, mas cumpria pena em regime aberto. Para a polícia, ele era integrante do Primeiro Comando da Capital (PCC). A família de Allan nega que ele tivesse envolvimento com a facção.
A morte de Allan de Morais foi citada em diversas oportunidades pelo secretário da Segurança Pública (SSP), Guilherme Derrite, como um troféu da Operação Verão.