Minissérie sobre incêndio na boate Kiss desperta comoção e revolta
Estreia nesta quarta (25/1), na Netflix, Todo dia a mesma noite, sobre tragédia de Santa Maria, que completa 10 anos nesta sexta-feira (27)
atualizado
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A minissérie “Todo dia a mesma noite”, que estreia na Netflix nesta quarta-feira (25/1), parte da vida cotidiana de muitos jovens: ir a uma balada na noite de sexta-feira. Seria uma ação corriqueira se eles não tivessem ido à boate Kiss, em Santa Maria (RS), no dia 27 de janeiro de 2013, quando aconteceu o incêndio que matou 242 pessoas.
A produção ficcional, dirigida por Julia Rezende, é inspirada no livro “Todo dia a mesma noite”, da jornalista Daniela Arbex, que tem uma abordagem inicial diferente. Daniela parte de um relato de um médico que pressentiu que aquele dia estava estranho devido ao número baixo de ocorrências.
“O livro da Dani é super forte. Mas, para o audiovisual, precisávamos de uma estrutura que ainda não sabíamos qual era”, conta o roteirista Gustavo Lipsztein, em entrevista ao Metrópoles. “Quando vi a informação dos pais sendo processados, percebi que tínhamos ali uma história, uma luta por justiça — e que ainda não foi feita.”
Uma noite de 10 anos
Daniela lançou o livro em 2018, cinco anos depois da tragédia. Na minissérie de cinco episódios, ela atua como consultora criativa e entende que a obra audiovisual é uma atualização do seu livro. “Em todo esse tempo, eu não me afastei dessa história”, afirma a autora. “Construí uma relação com essas pessoas e acompanhei tudo muito de perto.”
Para a jornalista, sua contribuição veio desse conhecimento profundo das personagens retratadas — as quais ela fazia questão de serem apresentadas com cuidado e respeito. A diretora Julia Rezende entende o suporte de Daniela como fundamental para trazer a delicadeza e a importância de mostrar que as 242 vítimas não são um número.
“Cada uma dessas vítimas tinha família, história e sonhos. Fomos em busca da essência dessas personagens, a fim de criar, no espectador, empatia por aqueles jovens”, explica Julia. “Tanto na dramaturgia quanto na direção, nossa preocupação era tornar a série palatável, porque poderia ser insuportável se fosse feita de outras formas.”
A dor que nunca cessa
Os primeiros episódios realmente beiram o insuportável. Assistir às cenas daqueles jovens cheios de sonhos e vida, quando se sabe do final trágico que os espera, desperta uma tristeza profunda no espectador. O roteiro é inteligente ao trazer um leque de personagens com histórias de vidas que se aproximam da realidade de diferentes pessoas.
Quem não foi atravessado pela parentalidade talvez tenha dificuldade de imaginar a dor de um pai ao enterrar seu filho. Mas todo mundo já foi (ou é) jovem e pode se sentir conectado com as histórias familiares.
A partir do terceiro episódio, o sentimento de tristeza dá lugar ao de revolta. O foco da tragédia muda para a luta dos pais por justiça pela morte dos filhos, apresentando desdobramentos surreais que talvez poucos acompanharam.
Além da morosidade do processo parecer uma afronta àquelas pessoas devastadas pelo luto, saber que alguns familiares das vítimas do incêndio na boate Kiss foram denunciados pelo Ministério Público, por crime de calúnia, deixa o espectador enfurecido.
Os promotores Ricardo Lozza, Joel Dutra e Maurício Trevisan se sentiram ofendidos por alguns cartazes colados nas ruas de Santa Maria com suas fotos e a frase: “o Ministério Público e seus promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular”.
O exercício da empatia
O ator Leonardo Medeiros, que representa um dos pais em “Todo dia a mesma noite”, tem uma recordação muito viva de quando soube da notícia do processo dos familiares. “Fiquei muito chocado na época, com um sentimento de revolta”, conta.
Tanto Leonardo quanto o ator Thelmo Fernandes, para viverem seus papéis, foram buscar inspiração na paternidade — Leonardo tem dois filhos e Thelmo, um.
“O processo de empatia com a minha personagem foi muito relacionado com a perda eventual dos meus filhos. Foi a única maneira de vislumbrar aquela modalidade de sofrimento de uma maneira delicada. É muito ruim lidar com esse tipo de emoção”, explica Leonardo.
Debora Lamm, que interpreta a mãe de uma das vítimas, não tem experiência com a maternidade na vida real — o que não a impediu de mostrar, na série, sentimento e força de uma leoa quando sente uma cria em perigo.
“A história tem uma urgência tão grande de ser contada que o trabalho já ganha força por si só”, diz a atriz, que também avalia que o resultado vem da delicadeza da direção: “Foi um set diferente, muito afetuoso. Sabíamos onde estávamos pisando e que o afeto era necessário.”
Arte a serviço
A fim de não fazer os moradores da cidade reviverem o trauma da tragédia, a série não foi filmada em Santa Maria. Para trazer o clima gaúcho, algumas tomadas externas foram gravadas em Bagé, divisa do Rio Grande do Sul com o Uruguai.
Os atores também não tiveram contato com os pais das vítimas da boate Kiss. Participaram, porém, de uma palestra sobre luto, que reconhecem como fundamental para construção de seus personagens.
“Ninguém é capaz de julgar o quanto deve durar o luto e a dor de uma pessoa. Entender isso foi transformador e essencial”, resume Thelmo.
Direção e elenco entendem a produção, que marca os 10 anos da tragédia, como um serviço para que a história não seja esquecida e a justiça, feita. “É o nosso trabalho de ator na sua maior grandeza, porque está a serviço de algo”, conclui Debora.
Algo muito grande para quem perdeu um familiar querido e há 10 anos espera por justiça. Algo maior ainda para um país que ainda não consegue lidar de frente com seus traumas.