Mortes por PMs na Baixada “parecem vingança”, diz diretora do FBSP
Diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno diz que operações da PM na Baixada Santista, em SP, parecem vingança
atualizado
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São Paulo — A diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno, afirma que operações da Polícia Militar (PM) como a deflagrada atualmente na Baixada Santista mais parecem motivadas por vingança e diz que o emprego de tropas especiais, como as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), em policiamento cotidiano tem problemas legais e operacionais.
As operações realizadas pela PM no litoral de São Paulo, após o assassinato de policias, tem deixado dezenas de mortos pelo caminho. No segundo semestre de 2023, 28 pessoas foram mortas em supostos confrontos com integrantes da corporação. Agora, entre 3 de fevereiro e a sexta-feira (23/2), foram ao menos 32. Entidades como o próprio FBSP já apelaram até à Organização das Nações Unidas (ONU) para interromper as ações.
Samira esteve agora em fevereiro em comunidades que são alvo da operação policial na Baixada Santista e coletou relatos de moradores que apontam para fortes indícios de execuções em alguns casos. Para a diretora do FBSP, “atalhos” na segurança pública costumam gerar ainda mais violência.
“Não é aceitável que um agente estatal utilize de ilegalidades para combater o crime. Isso não é justiça”, afirma. “Se dar tiro resolvesse o problema, a PM já teria acabado com o PCC há tempos, mas a facção já completa três décadas e se tornou a maior do país”, diz Samira ao Metrópoles. Confira a entrevista abaixo:
Quais os principais problemas das operações da PM deflagradas recentemente após a morte de policiais militares?
Acho que podemos destacar alguns problemas de ordem operacional e outros de ordem legal. No plano operacional, parece haver uma banalização no uso de tropas especiais, tal como a Rota e o COE [Comando de Operações Especiais], em um policiamento que é ordinário. A primeira operação Escudo ocorreu entre julho e agosto do ano passado e, pelo menos desde essa época, assistimos à presença constante dessas unidades, consideradas de elite, atuando no cotidiano do policiamento ostensivo de comunidades periféricas da Baixada Santista. Essas tropas são consideradas de elite porque são chamadas justamente quando o policiamento ordinário não foi capaz de responder, passam boa parte de seu tempo aquarteladas e tem treinamento diferenciado. Ou seja, a premissa aqui é a de que essas tropas entram quando o resto falhou. Mas, se elas são utilizadas cotidianamente, qual unidade poderá administrar situações de alto risco e periculosidade? No plano legal, temos ouvido muitas denúncias de violações de direitos das comunidades afetadas, desde a entrada em domicílios sem existência de mandado até casos de execuções sumárias. O mesmo ocorreu na operação Escudo do ano passado, tanto que de quatro casos de intervenções policiais que resultaram em morte em que já houve conclusão do Ministério Público, dois tiveram pedido de arquivamento, e em dois os policiais foram denunciados e a Justiça acolheu o pedido.
De que maneira a PM deveria agir quando um integrante da corporação é morto?
A morte de um policial, especialmente quando no cumprimento do dever, é um fato muito sério e evidentemente exige do Estado respostas céleres e duras. Os suspeitos precisam ser identificados, presos e julgados tendo como referencial as penas máximas previstas em lei. Além disso, é necessário compreender se o policial foi morto em decorrência de um confronto qualquer em situação aleatória ou se foi alvo justamente por ser policial, o que é comum já que um mecanismo de ascender em organizações criminosas é matando policiais. Ou seja, a pergunta aqui é o que a Secretaria de Estado da Segurança Pública deveria fazer, pois envolve o trabalho de investigação e inteligência que é de responsabilidade da Polícia Civil. Isso poderia ser viabilizado, por exemplo, com forças-tarefas que envolvem o trabalho conjunto das Polícias Civil e Militar e, eventualmente, envolvendo o Gaeco [Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado] do Ministério Público, garantindo o eixo investigativo e o de policiamento ostensivo. O problema é que a atual gestão tem respondido exclusivamente com a ação da Polícia Militar em ações que mais parecem operações vingança, dando tiros a esmo e vitimando inocentes. E tudo isto em um território que há muito sofre com a presença do crime organizado. Se dar tiro resolvesse o problema, a PM já teria acabado com o PCC há tempos, mas a facção já completa três décadas e se tornou a maior do país. E acho que aqui cabe uma reflexão de nos colocarmos neste lugar, que é o de um policial militar: pense que um dia você sai para trabalhar e um amigo de trabalho é assassinado. No dia seguinte você o enterra e precisa voltar ao trabalho, e ainda tem que prender o criminoso. É evidente que esses policiais que estão atuando no território estão com raiva e com medo, e é justamente aqui que entra o papel do comando, no sentido de garantir que esses policiais não façam uso excessivo da força, mas também que cumpram os protocolos, o que protege o cidadão e a si mesmos. Quando o policial não cumpre o protocolo ele fica mais sujeito a riscos e isso ficou evidente na morte do soldado Cosmo, já que as imagens da câmera corporal mostram quando ele se separa do grupo e resolve, sozinho, sem apoio operacional, entrar em uma viela e acaba sendo baleado pelo criminoso.
Existe algum paralelo entre o que acontece agora na Baixada Santista com outras ações da PM no passado?
Nós já tivemos operações policiais que resultaram em muitas mortes, tal como as que tem ocorrido na Baixada Santista, e também é comum que, após a morte de um policial, a resposta seja com ações policiais bastante letais, mas não na proporção que estamos vendo agora.
Quais relatos de moradores de comunidades na Baixada Santista mais têm chamado a atenção do FBSP? Existe alguma forma de dar fim à escalada no número de mortos em supostos confrontos?
Estivemos no dia 11 de fevereiro, domingo de Carnaval, nas cidades de Santos e São Vicente para a escuta de moradores das comunidades afetadas pela operação e de familiares de vítimas. O caso que mais me comoveu foi o de Hilderbrando Neto, de 24 anos, chamado pela família e por amigos de “Neto”. No dia 7 de fevereiro uma unidade da Rota invadiu a casa de Neto, que estava com a porta aberta em função do calor. Na sala, a mãe, a filha e uma criança de dois anos assistiam TV. Segundo o relato das mulheres, eles entraram já empunhando os fuzis e foram até o quarto onde Neto estava jogando no celular. Na versão policial, quando adentraram o quarto, Neto apontava uma arma de fogo para eles e, por isso, os policiais teriam atirado. No cômodo seguinte um colega de Neto, Buiu, de 20 anos, também foi morto a tiros de fuzil. O problema é que Neto era deficiente visual, sofria de uma condição chamada ceratocone bilateral avançado e os laudos médicos indicam que, pelo menos desde 2016 ele não enxergava de uma vista e tinha baixa visão na outra. Ele basicamente não tinha condições físicas de utilizar uma arma pois não enxergava. Quando chegamos no local para conversar com a família, a mãe nos mostrou o quarto, pedindo desculpas por não ter tido coragem de limpar. O ambiente cheio de sangue, Neto morreu na cama do pequeno cômodo em que estava. A última coisa que a família ouviu foi ele gritando “mãe” e então os tiros. O amigo morreu imediatamente, ele sobreviveu por dois dias no hospital, mas em 9 de fevereiro faleceu. Infelizmente, relatos como este foram comuns, sem contar que a maior parte dos casos não tem perícia de local e os familiares não tem acesso nem ao boletim de ocorrência.
No Brasil, parte da população interpreta como “apoio a bandido” quando se aponta e denuncia violência policial. De que forma se desvencilhar dessa visão binária das coisas?
De fato, a máxima de que “bandido bom é bandido morto” conta com forte apoio popular, tanto que o slogan tem sido responsável por eleger políticos de competência duvidosa há décadas, de Fleury a Bolsonaro. Em um país tão violento e desigual historicamente, é natural que parte da população espere que a polícia faça o serviço sujo. Se você não acredita na política, nos partidos, no Estado ou na justiça, parece ser mais simples delegar ao policial que está na ponta a decisão de aplicar a pena de morte. Na prática é isto que tem ocorrido em várias partes do país. A questão é que, mesmo nos países em que existe a previsão legal de pena de morte, que não é o caso no Brasil, a pena capital só é cumprida após um longo processo judicial, em que o acusado tem direito a ampla defesa. Me parece que o desafio é mostrar para segmentos da população que este “atalho” que supostamente resolve o problema da violência, na prática, gera mais violência. Não estamos falando apenas de ilegalidades ou de violações de direitos humanos, estamos falando de práticas ineficientes pois estas ações geram uma espiral de violência. Cada morto vai ter amigos e familiares que eventualmente vão buscar vingança. Não é aceitável que um agente estatal utilize de ilegalidades para combater o crime, isso não é justiça.
Como a postura da atual cúpula da Segurança Pública em São Paulo tem impactado a tropa?
O atual Secretário de Segurança Pública é um capitão, com passagem pela Rota, que migrou para a política partidária em 2018, quando eleito deputado federal. Na sua trajetória como tenente já atuava como influenciador nas redes sociais defendendo que bandido bom é bandido morto e foi eleito com esta plataforma. Considerando as promessas de campanha do governador Tarcísio e do perfil do secretário, não chega a surpreender que estejamos diante do crescimento da letalidade policial. Não se trata de um acidente de percurso, mas de um objetivo que vem sendo buscado, tanto que o secretário segue defendendo estas operações e negando qualquer tipo de ilegalidade. Existia uma certa expectativa que o Ministério Público ou a pressão da sociedade civil e da imprensa eventualmente poderiam servir como um freio para estas ações, mas o fato dele ter movimentado 60% dos coronéis (34 de um total de 63) esta semana indica que ele dobrou a aposta e estas ações marcadas por violência policial devem acontecer com ainda mais frequência.
Ação violenta de parte da PM acaba se voltando contra a própria corporação? De que maneira?
Certamente. Nos anos de 2021 e 2022, já sob vigência do programa Olho Vivo, em que os policiais utilizam as câmeras corporais, o Estado de São Paulo viu os números da letalidade provocada por policiais caírem drasticamente, e os números de policiais assassinados chegaram ao menor de uma série histórica de 30 anos. Mas a atual gestão assumiu decidida a acabar com o programa, e têm sido frequentes os casos de denúncia de violência policial em que os policiais não estavam fazendo uso do equipamento. E por que eu estou dizendo isso? Porque depois de acumular os menores números de policiais assassinados em três décadas, tivemos dois policiais de Rota assassinados em um período de seis meses. O último policial de Rota que havia sido morto em serviço tinha sido no ano 2000. Além dos casos de policiais assassinados no horário de trabalho, têm crescido o número de policiais mortos fora do horário de serviço e também casos de ataque, em que os policiais acabam feridos. A política de “olho por olho, dente por dente” tem consequências nefastas e, enquanto prosseguir, seguiremos contabilizando mortes de policiais.
Como vê a resistência da atual gestão em ampliar o uso de câmeras corporais por policiais militares?
Em primeiro lugar, vale chamar atenção para o fato de que esta é uma decisão burra. Hoje, 4 em cada 5 policiais nos EUA utiliza câmeras corporais. Lutar contra o avanço da tecnologia é uma sandice. É como recusar usar o Excel e preferir usar calculadora de mão. Mas o fato é que, o que parece estar no cerne dessa resistência é o fato de que as câmeras geram mais transparência e accountability. O policial é o agente do Estado a quem nós delegamos a autoridade para administrar conflitos sociais, ele anda armado em nosso nome e, se necessário, para a defesa de si mesmo ou de terceiros, poderá fazer uso da força letal sem que seja punido. Diante de tamanha responsabilidade, me parece absolutamente natural que estes servidores públicos utilizem as câmeras corporais. E já temos estudos que mostram, por exemplo, que com a utilização das câmeras caíram as denúncias contra policiais na Ouvidoria de Polícia. Ou seja, denúncias que eventualmente sejam falsas não se sustentam quando o policial tem as imagens à sua disposição. Além disso, as decisões de promotores e juízes se tornam mais robustas quando imagens podem comprovar um crime, garantindo que a punição seja aplicada com mais efetividade. Por fim, o criminoso responsável pela morte do soldado Cosmo foi identificado no mesmo dia graças às imagens da câmera corporal que ele usava, o que permitiu que ele fosse preso rapidamente. É um instrumento que é bom para todo mundo quando não se tem o que esconder.
Ao longo da semana, o governador Tarcísio de Freitas promoveu mudanças em volume visto como sem precedentes na cúpula da PM em meio a uma gestão, gerando reações negativas em grande parte dos coronéis da corporação. De que forma isso deve afetar a política de segurança do estado?
Ao que tudo indica, o secretário está se cercando cada vez mais de coronéis mais alinhados à sua gestão e isolando aqueles que ofereciam algum tipo de resistência a operações como as que vem ocorrendo na Baixada Santista, caso do subcomandante que caiu. O que para mim parece mais revelador destas mudanças é o perfil dos coronéis que assumiram os postos mais estratégicos. Hoje, Comando Geral, Subcomando, Corregedoria, Inteligência, Coordenação Operacional, Comando da Capital e da Região Metropolitana estão nas mãos de coronéis do Choque e/ou da Rota. E, ainda que estes profissionais sejam extremamente bem-preparados, quando se coloca este mesmo perfil em todos os postos-chaves, a tendência é que seja uma gestão caracterizada pelo enfrentamento. Então arrisco dizer que operações como a Escudo de 2023 e a atual operação “Verão” se tornarão mais frequentes, os números da letalidade policial seguirão crescendo, e a gestão vai continuar buscando alternativas para acabar com o programa de câmeras corporais, ainda que formalmente renove o contrato com a empresa contratada.