Mãe de mulher escravizada por desembargador morreu procurando filha
Irmãs revelam como família andou “longas distâncias”, ouviu mentiras, e viu fracassar “missão de vida” da mãe de Sonia Maria de Jesus
atualizado
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São Paulo – Resgatada de dentro da casa de um desembargador em condições análogas à de escravidão, Sonia Maria de Jesus, de 50 anos, foi levada aos nove anos de idade de Osasco, na Grande São Paulo. Desde então, sua família nunca mais soube de seu paradeiro e chegou a achar que estava morta.
Depoimentos obtidos pelo Metrópoles revelam como a mãe de Sonia passou até seus últimos dias procurando pela filha e morreu em 2016, sem completar aquela que dizia ser sua “missão de vida”. Irmãs biológicas querem contato e revelam a revolta pelas condições em que ela foi encontrada na casa da família do desembargador Jorge Luiz Borba, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
Os familiares foram encontrados pela equipe de auditores e procuradores do Trabalho com ajuda da Defensoria Pública da União. Ela é a mais velha de seis irmãos. Ao lado da mãe, todos a procuraram por décadas.
Eles relataram que, quando crianças, viram a mãe, Deolina Ana de Jesus, ser agredida pelo pai, que também batia em Sonia. À época, em meio ao desespero da rotina de violência, disseram que uma funcionária da creche frequentada por Sonia ajudou a mãe a deixar a menina com uma psicóloga da instituição, Maria Leonor Gayotto, que vem a ser a sogra do desembargador Jorge Luiz Borba. Desde então, viram a irmã uma única vez, em uma visita, e nunca mais tiveram notícia dela.
Marisa de Jesus Cruz afirmou que uma funcionária da creche dizia à mãe que Sonia estava bem e tinha ido para os Estados Unidos e que, por isso, não havia razão para preocupação.
Dona Rosa, como era conhecida a funcionária da creche, chegou a dar endereços no bairro do Morumbi, em São Paulo, onde a mulher que levou sua filha nunca estava. A esses endereços, Marisa acompanhou a mãe em longas caminhadas a pé. Lembrou-se de ter visto a irmã uma vez, quando a sogra do desembargador a levou para visitar a família que a procurava.
Marta de Jesus, outra irmã, relatou que a mãe dizia que encontrar Sonia passou a ser uma “missão de vida”. Aparecida de Jesus, uma terceira irmã, afirmou que a mãe fez “muitas buscas para encontrar Sonia, mas iam a endereços e não encontravam Leonor”, nem qualquer informação sobre ela.
Disse que a mãe “sonhava em encontrar a filha e tinha desespero pensando que não ia mais encontrá-la”. Após anos sem qualquer notícia, ela achou que Sonia havia morrido e disse que nunca mais a encontraria antes de ela própria morrer – o que aconteceu em 2016.
Após alguns anos de convívio, Leonor repassou Sonia à filha, Ana Cristina Gayotto de Borba, que é esposa do desembargador Jorge Luiz Borba. Na casa deles, funcionários relataram que Sonia sofria com puxões de cabelo e beliscões de Ana Borba, quando “não fazia uma tarefa certa”.
Ela vivia em um quarto apartado e almoçava com outros empregados. Surda, nunca foi levada a uma escola para se alfabetizar em Linguagem de Sinais. Vivia com roupas de segunda mão da família e passava o dia fazendo tarefas domésticas. Em retratos guardados pela família, Sonia aparece ao lado de outros empregados com a legenda: “ajudantes de ferro”. Por quase toda sua vida, até 2019, ela nem sequer tinha CPF em seu nome. Seu quarto tinha mofo e infiltrações.
Marta de Jesus afirmou estar revoltada, porque Leonor era psicóloga, seu marido era médico, a família Borba, com quem a irmã morou a maior parte da vida, tinha um desembargador, e mesmo assim Sonia não teve acesso à educação, nem foi alfabetizada, oportunidade que mesmo seus irmãos biológicos, “filhos de uma mulher preta e pobre”, tiveram. Outra irmã disse que “gostaria muito de encontrar e abraçar” Sonia, porque “pensava que ela estava morta”.
Sonia, no entanto, voltou para a casa dos Borba, após decisões dos ministros Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça, e André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal. Ambas as decisões rejeitaram pedidos da Defensoria Pública, que representa Sonia na Justiça, para mantê-la longe da família.
Campbell afirmou não ver, “ao menos por ora, elementos para presumir que ainda se faz presente o risco de perpretação” do crime de trabalho escravo na residência dos Borba. Sonia estava em uma casa especializada em acolher mulheres vítimas de violência doméstica e inrterfamiliar.
O defensor público da União afirmou a Mendonça que a decisão de Campbell “está em total descompasso com o sistema de proteção às vítimas de redução à condição análoga à escravidão e norma protetora de mulheres vítimas de violência doméstica”. “A decisão promove a revitimização da Sra. Sonia, além de ferir o bom funcionamento da instituição de acolhimento”.
Ele argumentou que os investigados, com a decisão do ministro, poderão entrar na instituição com seus advogados, que poderão filmar “a vítima e questionar a mesma, resgatada em período recente de escravidão, se deseja ou não voltar. Há evidente ofensa aos direitos fundamentais da pessoa com deficiência, a qual será constrangida perante o suposto agressor sobre seu retorno à vida em condição análoga à escravidão”, diz.
Jorge Luiz Borba foi alvo de mandados de busca e apreensão em uma operação da Polícia Federal, no dia 6 de junho, para investigar a manutenção de Sonia em situação análoga à de escravidão. Na ocasião, ela foi resgatada.
Borba foi indicado ao TJ-SC em uma vaga do quinto constitucional, por indicação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A entidade é responsável por votar uma lista sêxtupla para o cargo. Em uma segunda eleição, os desembargadores elegem os três mais votados entre os seis da lista da entidade. Fica a cargo do governador do Estado nomear um desses nomes. Borba está há 15 anos na Corte.