Juízes dão aula em empresa de perueira ligada a administrador judicial
Escola de direito on-line onde juízes dão aula está formalmente em nome de perueira, mas é ligada a administrador judicial nomeado por eles
atualizado
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São Paulo — Juízes de varas de empresariais do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) dão cursos para uma escola de direito on-line que está formalmente em nome de uma dona de perua escolar da capital paulista, mas tem as digitais de um administrador judicial (AJ) que os próprios magistrados nomearam em processos milionários.
O administrador judicial em questão acumula nomeações em insolvências de empresas que, somadas, têm R$ 700 milhões em dívidas por indicação desses juízes. Nessa função, o AJ é responsável por fiscalizar se o plano de recuperação judicial está sendo cumprido, o que envolve o pagamento da dívida.
É sobre o valor devido pelas empresas que são calculados os honorários de administradores judiciais — chegam a 5% da dívida. A indicação de um AJ é de livre escolha dos juízes.
Os juízes que deram aula nos cursos são Andrea Galhardo Palma, da 2ª Vara Empresarial Regional de São Paulo, e Paulo Furtado de Oliveira Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais (RJs). Ambos nomearam o advogado Ricardo Cabezon, que não é sócio formal da escola, mas tem seus contatos e até mesmo seu escritório de advocacia no cadastro do site da empresa, chamada Neo Jus.
Por razões legais, juízes não podem manter qualquer tipo de relação de negócios com seus auxiliares, como peritos e administradores judiciais, mesmo que esses sejam agentes de sua confiança.
Casa na zona norte
O portal Neo Jus vende cursos de diversas áreas do direito. “Os melhores cursos de extensão e pós”, diz o letreiro grande em fonte azul na primeira página do site. Formalmente, a empresa está em nome de Alexandra da Cunha, que é dona de uma empresa de transporte escolar da zona leste de São Paulo.
Tanto no site quanto no registro da Junta Comercial de São Paulo, o portal Neo Jus tem apenas Alexandra como sócia, com um capital de R$ 10 mil. A sede registrada fica em uma casa no bairro de Engenheiro Goulart, na zona leste paulistana.
Trata-se de um endereço residencial. Uma inquilina de Alexandra atendeu a reportagem e disse que a casa pertencia a ela, apesar de não morar lá. O Metrópoles, então, procurou Alexandra em um outro endereço, na zona norte, onde está sediada sua empresa de transporte escolar.
No local, quem atendeu foi o marido dela. Ele afirmou que, de fato, Alexandra é dona da Neo Jus, mas em sociedade com o advogado Ricardo Cabezon. Disse ainda não saber o motivo de só ela ser a sócia formal. “Aí é rolo deles, lá, né?”. Segundo ele, Alexandra tem formação em direito, o que ela não tem.
O Metrópoles apurou que Alexandra é sócia de 50% de uma empresa de transporte escolar. Em seu nome, está registrada uma perua. A empresa já firmou contratos para o transporte escolar com a Prefeitura de São Paulo.
Um vizinho afirmou à reportagem que Alexandra é perueira de escolas na região. Por mensagem de WhatsApp, ela afirmou que não é formada em direito, mas na área da “educação”.
“Se você for procurar nas escolas, faculdades e cursos nem sempre a formação do dono guarda relação com os cursos que tem. Eu gosto e aposto na área do direito. Ainda irei me formar. Não entendo porque implica, qual é o problema?”, questionou Alexandra à reportagem.
Alexandra afirma que as perguntas do Metrópoles sobre quem de fato comanda a escola são “eivadas de preconceito” com sua profissão no transporte escolar.
“Você deixou entender que uma pessoa que trabalha no ramo de transporte escolar como eu não é capaz de arrumar no mercado bons professores. Saiba que sou formada em educação, tive outras experiencias profissionais e sou muito interessada no nicho do direito há muito tempo”, afirmou.
Alexandra disse que abriu o curso sozinha, mas não respondeu sobre como se aproximou e arregimentou juízes e advogados de São Paulo para seu curso, como os magistrados Andrea Palma e Paulo Furtado. Também não explicou uma série de documentos que ligam sua empresa ao advogado Ricardo Cabezon.
Digitais do administrador judicial
Diferentemente das outras empresas do ramo de transporte escolar de Alexandra, que são registradas na Junta Comercial em Guarulhos, cidade vizinha de onde ela reside, o carimbo do cadastro da Neo Jus vem da unidade do órgão em São Roque, no interior de São Paulo. Naquela cidade, fica a banca de advocacia de Ricardo Cabezon.
O telefone para contato no registro da empresa é o mesmo do escritório do advogado, inclusive citado em decisões de juízes que lhe nomearam em processos de recuperação judicial e falência. Até mesmo o celular exposto no site como contato de WhatsApp da empresa está em nome dele.
O nome do escritório do advogado também aparece como o responsável pelo site Neo Jus. Ou seja, é ele o mantenedor da página na internet, único ativo da empresa com capital de R$ 10 mil.
Além disso, Alexandra não aparece em nenhuma publicação da Neo Jus. Quem é destaque como seu principal professor e até mesmo apresenta um jornal on-line com o nome da escola é Cabezon.
Nomeações e cursos
Nas varas empresariais, Cabezon acumula ao menos 13 processos que lhe rendem R$ 240 mil mensais como administrador judicial em causas que somam R$ 700 milhões em dívidas.
Somente em 2023, ele foi nomeado nove vezes por Andrea Palma, uma a mais do que o limite recomendado anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para indicar um mesmo administrador judicial.
Desde 2017, ele já foi nomeado em 12 processos na vara que tem Paulo Furtado como titular. Um caso emblemático recente foi o da recuperação judicial da Polishop, conhecida rede varejista que acumula dívidas de R$ 395 milhões. Somente neste caso, Cabezon vai receber R$ 75 mil mensais, por indicação do magistrado.
No site do Neo Jus, os juízes Andrea Palma e Paulo Furtado deram um curso sobre reforma da Lei de Recuperação Judicial. Os vídeos foram todos gravados em 2021 e estão disponíveis até hoje, pelo valor de R$ 340.
Procurados, Paulo Furtado e Andrea Palma não se manifestaram. Eles não responderam à reportagem sobre quanto ganharam da empresa Neo Jus nem sobre sua relação com Ricardo Cabezon.
Advogado nega ser “dono” de escola
Já o advogado Ricardo Cabezon afirma que não faz parte do quadro societário da Neo Jus e diz que a empresa pertence mesmo a Alexandra. Ele afirma ter sido “contactado” para “prestar auxílio técnico” no projeto da empresária de transporte escolar e disse que procurou “fazer o que foi possível para que virasse realidade”.
“Quanto ao domínio e/ou algum eventual dado pode até ‘estar’ mas não ‘é’ meu ou do escritório. Todas as despesas são arcadas pela própria instituição de ensino. Posso assegurar que não ‘banco’ a escola, ela é gerida administrativamente pela Sra. Alexandra, que tem ciência de suas obrigações”, disse
Ele afirma, ainda, que “a qualquer momento” pode se “desvincular da Neo Jus e/ou gravar/lecionar para outras instituições de ensino”. Ele diz também que o curso on-line com juízes que o nomearam como administrador judicial teve coordenação pedagógica de um ex-juiz que ficou encarregado de reunir o corpo docente.
“Há, inclusive, docentes com quem nunca tive qualquer relação profissional até hoje. Fiquei surpreso e honrado com o convite do coordenador para lecionar sobre tema pontual. Recebi R$ 350,00 pela hora gravada, que eu saiba, esse valor é tabelado na escola”, disse.
Ao Metrópoles, o ex-juiz e seu atual sócio afirmaram terem sido convidados pelo próprio Cabezon para coordenar e dar aulas na Neo Jus. Outros advogados que aparecem como “docentes” no site disseram também terem sido convidados pelo advogado.
Cabezon diz que também não é a “face pública” do projeto porque “os professores, que protagonizam as colunas diárias há anos, aparecem exponencialmente muito mais do que eu” no canal do curso de direito no Youtube.
Por fim, ele rechaça que tenha sido “muito nomeado” pelo Poder Judiciário. “Sou nomeado em número muito aquém, se comparado a vários outros colegas que atuam em casos de grande vulto econômico. A média das nomeações pelo tempo que exerço a atividade (13 anos) está aquém do limite recomendado pelo CNJ mesmo antes da resolução existir”.