Guerra às drogas com limpeza social é um “encontro perverso”, diz pesquisador
Coordenador do LabCidade, da USP, Aluizio Marino afirma que Cracolândia é mazela de projeto racista e segregatório da cidade de São Paulo
atualizado
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São Paulo — A região central de São Paulo é um território em disputa há mais de um século, segundo o coordenador do LabCidade da USP, Aluizio Marino. Em entrevista ao Metrópoles, ele diz que a Cracolândia é um projeto racista e segregatório e que só o diálogo entre todos os envolvidos pode ser caminho para uma solução.
Especialista em políticas públicas com doutorado em planejamento e gestão do território, Marino diz que todos que estão envolvidos de alguma forma com a situação do centro passam por “extremo sofrimento”.
“O que a gente tem que entender é que essa política de violência, que não é de agora, mas dos últimos 30 anos, está longe de resolver os problemas”, afirma.
Levantamento publicado em 12 de julho pelo LabCidade mostrou que a quantidade de pessoas consumindo drogas na região da Cracolândia ao longo dos últimos três meses permanece estável. Leia a seguir, a entrevista concedida por Aluizio Marino ao Metrópoles.
Dá para dizer que o centro como um todo, ou ao menos os bairros mais populares e de comércio na região, é terra arrasada hoje?
O centro é um território em disputa há mais de um século. Esse processo de abandono, que justifica políticas de revitalização, reestruturação ou de renovação, que é o novo termo que se usa, não é novidade. O centro de São Paulo sempre foi território onde trabalhadores, camadas populares, sempre circularam, buscaram morada. Esse abandono do centro, que se constrói, é um abandono por parte das elites. Isso é muito importante de se falar. Os trabalhadores, classes populares, moram ainda e desejam morar no centro. A gente vê que esses projetos de revitalização não pretendem incorporar e viabilizar uma presença cada vez mais popular, muito pelo contrário. Essa política de cercamento, de expulsão, de tirar barraca de morador de rua, de despejo de pensões e cortiços, isso é histórico e marca essa guerra urbana. Não é novidade.
E a situação da Cracolândia, especificamente?
Mesmo quando a gente fala de Cracolândia, as operações mudam de nome, mas as políticas são as mesmas. Concomitantemente às operações policiais, que marcam a política pública para esse problema complexo, a gente também tem as operações urbanas. A presença do fluxo, muitas vezes, é elemento de justificativa para uma política de exceção, como a destruição de um patrimônio histórico que, segundo a legislação, não poderia ser derrubado. Você tem um encontro muito perverso de política de guerra às drogas e combate ao crime organizado, junto com tentativa de limpeza e higiene social desse território. Esse encontro é muito perverso. Se a gente continuar tratando a Cracolândia como problema de polícia e não social da cidade, a gente vai continuar alimentando essa máquina de destruição de qualquer possibilidade de o centro como lugar popular.
O que o senhor diria para aquela pessoa que circula pelo centro e se sente insegura porque tem o risco de perder o celular, por exemplo?
Obviamente, todos que estão nessa condição hoje, quem trabalha, circula, mora, comerciante, está todo mundo numa situação ruim, de extremo sofrimento. Não é só quem está em situação de rua. O que a gente tem que entender é que essa política de violência, que não é de agora, mas dos últimos 30 anos, está longe de resolver os problemas. Essa política recente de dispersão intensificou, e muito, os conflitos. Hoje, a situação de completa insegurança do centro é resultado da política pública. Não é da gangue da bicicleta, da gangue da pedrada, que se constituem esses monstros. É uma política pública equivocada, que provoca violência e alimenta esse ciclo infinito. Então, a gente tem, no senso comum, uma ideia muito equivocada de que o problema do centro de São Paulo é a falta de segurança e de polícia. A gente nunca teve tanta polícia no centro e tanta violência implicada ali contra, por exemplo, os usuários da Cracolândia. Os índices não diminuem, as cenas de uso de drogas não acabam. Inclusive, hoje, a gente tem a segurança como uma mercadoria extremamente lucrativa nesse território. Com denúncia de agentes de segurança pública vendendo segurança privada. Tudo isso tem gerado um ciclo muito perverso. Toda essa lógica de dispersar e violentar essa população tem piorado a vida de todo mundo, e não somente de quem está ali usando droga.
É possível afirmar, categoricamente, que o fluxo é usado ou instrumentalizado pela especulação imobiliária, como se escuta de muitos comerciantes?
Não gosto desse tipo de afirmação maquiavélica, como se estivessem numa mesa de reunião os grandes especuladores delimitando para onde vai o fluxo e como isso vai impactar, gerar oportunidades de negócio. Acho que não é por aí. Mas o fato é que quando a gente pensa a lógica imobiliária, e no centro é muito forte, é uma lógica totalmente especulativa. Nela, muitas vezes a presença desses fluxos, ou de algum elemento que, entre aspas, “degrade o território”, pode ser oportunidade de negócio, sim. O exemplo mais evidente é quando você tem, na justificativa da presença do tráfico e de uma situação de risco, a possibilidade de fazer uma política de terra arrasada em um território todo demarcado por patrimônio tombado. Na legislação, é proibido derrubar as fachadas de um pedaço das quadras dos Campos Elíseos. E foi a presença do fluxo todos esses anos ali que justifica uma política de exceção e completo desrespeito à legislação do patrimônio histórico, que é um dos grandes entraves para o avanço do mercado imobiliário no centro. Então, existem encontros, mas não é algo tão simplista.
Quais são os caminhos para tornar a cidade mais habitável no centro?
Não existe fórmula mágica. A gente só vai conseguir transformar a situação do centro de São Paulo a partir do diálogo entre os diferentes sujeitos que compõem esse tecido urbano. Tem que juntar moradores, comerciantes, representantes da população em situação de rua, assistentes sociais, profissionais da saúde, coletivos que trabalham no território. Ou a gente cria uma arena de discussão ampla para debater questões do centro e definir política de estado, de cidade, ou a gente vai continuar com essa lógica de políticas eleitoreiras de governantes do momento que vêm e transformam, acabam com programas ao bel prazer. Utilizam a Cracolândia mais como agenda eleitoral do que, na verdade, para enfrentar o problema que está ali. O segundo ponto é uma mudança radical da política pública para esse problema, que hoje investe muito, e muito mal, em uma política de segurança pública, que de segurança não tem nada. É uma lógica de violência e cercamento, de inviabilidade dos espaços públicos. A gente tem que investir em cuidado, passando pela saúde, assistência, trabalho, moradia, essencialmente. Tem que discutir uma política de moradia muita além do que é discutido hoje. Hoje, quem acessa a política de moradia, quando existe, é quem pode financiar um imóvel. E essa população está muito longe de conseguir isso. Por fim, entender que a Cracolândia é talvez a pior mazela do que é nosso projeto de cidade, que é um projeto de cidade racista e segregatório. A gente tem que pensar que é um problema estrutural, e não de escolha individual dos sujeitos que estão ali, e debater de forma profunda, com política de reparação histórica. É uma população majoritariamente negra, que foi excluída ao longo da história da possibilidade de ter terra e oportunidade. População em situação de rua, circulando pela região central de São Paulo, não é de hoje, é do começo do século passado. Desde que se aboliu a escravidão tem população negra circulando pela cidade de São Paulo em busca de oportunidade. A gente tem lei da vadiagem, uma série de instrumentos de controle desses corpos, e hoje talvez a guerra às drogas seja a principal tecnologia para isso.