Garrido, do Pirajá e da Bráz: “Boemia não morreu, mas o boêmio mudou”
Ricardo Garrido, sócio do Original, Pirajá, Astor, da pizzaria Bráz e de outros 40 estabelecimentos, fala com exclusividade ao Metrópoles
atualizado
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São Paulo – Em 2023, o bar Original, em Moema completa 27 anos. O Pirajá, que surgiu em uma esquina de Pinheiros como um bar-homenagem aos congêneres cariocas, ganhou filiais e completa 25 anos, assim como a rede de pizzarias Bráz. O Astor, com unidades na Vila Madalena e nos Jardins, alcança 23 anos, e a Lanchonete da Cidade chega à maioridade: 21 anos. Todas essas marcas e estabelecimentos gastronômicos paulistanos pertencem a um mesmo grupo: a Companhia Tradicional de Comércio. A CiaTC, como é chamada, foi formada naqueles meados dos anos 1990 por cinco então jovens executivos: Edgar Bueno, Fernando Grinberg, Mario Gorski, Sergio Camargo e Ricardo Garrido, que concede esta entrevista ao Metrópoles.
De uma casa – o Original, com duas dezenas de funcionários –, a CiaTC hoje possui 45 bares, restaurantes e lanchonetes, onde trabalham 1.300 colaboradores. Ao longo dessa trajetória, o grupo ganhou novos sócios e, há uma década, o aporte de um fundo de investimentos criado por Artur Grynbaum e Miguel Krigsner, acionistas do Grupo Boticário.
Não é exagero dizer que foi a CiaTC que “reensinou” o paulistano a beber um chope nota 10, a comer uma pizza com massa e ingredientes de primeira qualidade e a descobrir o prazer de abocanhar um petisco tão singelo quanto um bolinho de abóbora recheado com carne-seca.
Nesta conversa, Ricardo Garrido relembra a trajetória do grupo, fala de tendências na gastronomia de São Paulo, diz que a pandemia impulsionou novas áreas no segmento e que a boemia não morreu.
Há 27 anos, você vendeu seu carro e os futuros sócios juntaram economias para abrir o Original. Se fossem começar um negócio hoje, esse seria o caminho?
Provavelmente, a gente começaria do mesmo jeito. Mas, começando hoje do mesmo jeito, talvez a gente não chegasse onde chegou. Temos um mercado muito diferente, com um nível de concorrência muito maior do que a gente pegou há 30 anos. Mesmo tendo crescido, com muitas casas, o nosso jeito de pensar as coisas é o de sempre: acreditar em gente, acreditar que temos que ser bons, acreditar em criatividade.
Qual a diferença do mercado hoje para aquela época?
É a quantidade e a qualidade da concorrência. Nós nascemos e nos desenvolvemos num período em que o mercado ainda estava pouco profissionalizado. Toda reflexão para quem quisesse montar um bar ou um restaurante era muito de intuição ou de uma herança familiar. A gente era apaixonado, mas vinha de uma carreira executiva e tinha uma maneira de pensar um pouco mais na estratégia, no segundo e terceiro passos antes de dar o primeiro. A gente sempre foi de pesquisar muito para depois fazer. O Original é um projeto de pesquisa, quase acadêmico. Rodamos um monte de bares em São Paulo antes de abrir. E a gente continua com um princípio: só temos casas em que temos prazer em trabalhar e em frequentar.
Mas vocês não avaliam também o resultado que pretendem ter?
Sim, mas a gente acredita que o resultado é uma consequência disso. Quando a gente abre um bar e consegue proporcionar uma determinada experiência, bem executada, com as ações bem controladas, ele chega em um resultado financeiro. O consumidor para o qual esse produto faz sentido nos recompensa com lealdade, com frequência.
Vocês começaram com casas abertas na rua – como o Original, o Pirajá, o Astor – e depois passaram aos shoppings também. O paulistano que vocês atendem no shopping é diferente do que sai às ruas?
A gente se convenceu a ir para shopping a partir de uma tese do Shopping Morumbi de que eles precisavam de um bar, porque estão numa área de muitos escritórios em volta. E eles acabaram nos influenciando a levar o Pirajá para lá. A gente era bem resistente mas, ao mesmo tempo, pensamos: tem gente que vai no shopping e merece tomar um chopinho bem tirado. Será que a gente não pode prestar um serviço a esse cidadão e para essa cidadã que estão lá fazendo compras? Nosso negócio é deixar a vida das pessoas mais legal. Se ele está no shopping e quer comer um arroz e feijão na hora do almoço, um picadinho, tomar um chope e voltar mais feliz para trabalhar, tamo junto. Então, ele não é um público diferente, não é um consumidor diferente, é um consumidor num momento de consumo diferente.
Vocês expandiram a pizzaria Bráz e o Astor para o Rio e Campinas, mas só a Bráz vingou nessas cidades. Por quê?
Sempre que der errado, eu tenho esse princípio, é por culpa nossa, nós que não enxergamos alguma coisa. Em Campinas, nós montamos o Astor superlindo, mas no lugar errado. Era uma operação muito grande, não entendemos um pouco o público local e fizemos uma coisa, talvez, um pouco complicada como expectativa de bar para a população local. E o público em Campinas tem uma concentração muito grande no fim de semana. A frequência de bar no começo de semana ou é baixa ou de uma coisa mais corriqueira, mais simples. E o Astor era um bar complicado e caro. Talvez se a gente tivesse aberto Pirajá em Campinas teria se comportado melhor, por ser um bar que oferece uma coisa mais fácil de ser entendida, de ser consumida a qualquer hora. Não tem problema algum com a cidade, que é maravilhosa.
Pouco antes da pandemia, você passou um período em Nova York tanto para um período sabático quanto para estudar o seu segmento. O que trouxe dessa experiência?
Eu voltei de lá achando que nós, do setor de hospitalidade e gastronomia aqui no Brasil, somos muito bons. Eles têm uma série de dificuldades, concorrência, mas uma série de facilidades, previsibilidade, financiamento para fazer as coisas, assertividade do setor público de prestação de serviços de água e luz. Não têm oscilações como a gente tem aqui no Brasil. Não vi grandes coisas transformadoras e arrepiantes na área digital. Na pandemia, estavam dando as cabeçadas que a gente deu aqui. Eles não souberam fazer delivery em Nova York. Uma vez, eu pedi um delivery do Carbone: não chegou até hoje, faz três anos, nunca ninguém me ligou. Há uma zona de conforto lá, o cara que é bom, o cara fatura, o cara sabe quanto vai vender todo dia.
Mas o que pode ser comparável entre os cenários daqui e de lá?
Com todas as dificuldades que a gente tem, os operadores de bar e restaurante do Brasil são muito bons, tiram leite de pedra. Nossas matérias-primas mais importantes são todas importadas, custam mais caro no Brasil, em dólar, fora o efeito do câmbio. Os coquetéis clássicos são os mesmos, né, aqui e lá. Só que um coquetel em Nova Iorque custa 17, 18 dólares. Imagina vender um coquetel em São Paulo por 100 ou 120 reais? A gente vende coquetel por 40 reais com as mesmas matérias-primas, num nível pau-a-pau com os caras. Mas, ok, tem uma coisa inspiradora em Nova York, é uma Champions League de talento humano no setor de bar e restaurante.
Como assim?
Há uma qualidade de mão-de-obra humana que faz diferença. E para mim isso é inspirador porque é o desafio que a gente tem aqui no Brasil: ajudar na formação e desenvolvimento de quem trabalha com a gente para que adquiram um nível que ainda não temos. Quase todo mundo que trabalha em bar e restaurante nos Estados Unidos tem curso superior, veio de fora, fala duas, três línguas, tem uma cultura geral que se transforma em qualidade. Fui a 150 restaurantes em um ano, pesquisei a estrutura de negócio, o pensamento estratégico de grupos semelhantes ao nosso. E voltei mais focado em desenvolver a equipe.
Pretende vender essa experiência?
Nosso setor, definitivamente, tem um impacto social enorme no mundo inteiro. No Brasil, mais ainda, porque é um setor que muitas vezes pega a mão-de-obra como primeiro emprego do cara e dá uma educação profissional pro jovem, seja numa empresa como a nossa, seja no McDonald’s. É um setor que começa a transformação profissional de um jovem e que, naturalmente, tem que treinar, porque é um trabalho muito específico. Por outro lado, a gente tem um projeto, que é trabalhar com pessoas mais velhas, experientes no salão e na cozinha. São pessoas que não deveriam ter parado de trabalhar no setor e pararam, que às vezes precisam de uma flexibilização de horário. E são pessoas que têm um talento que os mais jovens precisam aprender.
E como vocês passaram pela pandemia?
Em meados de 2020, depois de um sabático, eu voltei de Nova York e os sócios se reaproximaram para a guerra. Fechamos três lojas durante a pandemia, mas abrimos cinco desde então, além do Devoro, que surgiu como um canal próprio de delivery, e hoje é uma área importante de relacionamento digital com o cliente. No futuro, é por meio dele que o cliente irá fazer a reserva de mesa, comprar nosso azeite, pedir pizza na Bráz, participar de promoção, ser convidado para eventos especiais.
Quais as diferenças entre o cliente do delivery e o do salão?
Embora não tenha o tracking perfeito do cliente do salão, a gente percebe que são dois momentos diferentes de consumo. O delivery é uma prestação de serviço de conveniência para um cara que, naquele dia, não quer ou não pode sair de casa. No salão, o negócio é a hospitalidade, um serviço de entretenimento, para alegrar as pessoas. A pandemia nos fez ver que, às vezes, as pessoas precisam ser minimamente alegradas, mesmo quando não podem sair de casa. Por isso, a pandemia nos deu um clique e a gente criou também um produto, que é uma pizza da Bráz congelada, quase pronta, que em sete minutos você finaliza num forno convencional de casa. Por que a gente não pensou nisso antes? Porque a gente era muito preso a um único jeito de oferecer pizza, que era no salão. Então, a gente abriu um pouco a cabeça para tentar prestar hospitalidade e criar momentos de congregação onde o cliente estiver.
O impulsionamento do delivery, o cardápio em QR code, a disseminação do álcool em gel: disso tudo que a pandemia trouxe, o que você acha que vai estar conosco daqui a dez anos?
Eu acho que a pandemia vai megavalorizar os espaços de congregação e união de pessoas, que pareciam coisas cotidianas e banais, como, justamente, os bares e restaurantes. Como é importante ter a possibilidade de ir, por exemplo, num jogo de futebol; ir a um show se você gosta de música, a festivais… Então, acho que as pessoas vão valorizar o dia a dia, os hobbies, as coisas que gosta: o bar do coração, o time do coração. Essa é a grande notícia para o setor de entretenimento. Tanto é que os volumes de venda nos negócios que geram experiência estão acima de 2019, descontando o efeito de aumento de preço. Na grande maioria, as nossas casas estão mais cheias do que no período pré-pandemia.
O que falta ser inventado na gastronomia de São Paulo?
Sempre vai ter espaço para alguma coisa nova e para fazer algo novo numa coisa velha, que foi muito mais o nosso caminho, que foi o de olhar alguns modelos de comércio tradicionais que todo mundo ama, mas que estão meio parados no tempo. E a gente foi lá e fez. Com a pizza foi um pouco a mesma coisa: até a chegada da Bráz, as pizzarias estavam muito paradas, sem inovação. E São Paulo sempre foi um berço mundial de pizza. As melhores pizzarias continuam sendo as mesmas de quando a gente era criança, e isso acabou sendo a nossa inspiração: a Bráz é a nossa pizzaria de criança, atualizada em termos de qualidade da experiência e hospitalidade. Então, acho que sempre vai ter muita coisa para fazer, nem que seja fazer de uma maneira diferente coisas que estão sendo feitas.
E vocês estão olhando para algum outro segmento com essa mesma perspectiva?
Estamos transformando a Bráz Trattoria do Shopping Cidade Jardim, que vai passar a se chamar Casa Bráz. Ela vai ser um laboratório, um centro de desenvolvimento de receita e de hospitalidade da nossa da empresa. Vamos testar ingrediente, receita, mudar a massa, o fermento; vamos testar lá primeiro a carta de vinhos e queremos que o atendimento também seja a nossa referência. Vai estar pronta em dois meses.
E a Lanchonete da Cidade e o Astor passarão por mudanças de ambiente e de conceito, certo?
Sim. A gente tem um outro projeto pensado para o Astor, que pode nos levar ao universo de comidas diferentes, novos universos. Está na prancheta, assim como para o Pirajá, para o qual temos um outro produto que a gente acha que é uma derivação, uma coisa típica no Rio de Janeiro e que aqui em São Paulo ainda não é feito.
Uma casa de sucos, galetos?
A gente está louco para testar. É uma coisa quase óbvia, que no Rio é supercelebrada, mas não vou falar, ou os caras vão roubar nossa ideia, tem vários lugares clássicos que fazem isso e aqui em São Paulo até existe, mas ninguém aprofunda.
E vocês ainda enfrentam problemas decorrentes da pandemia?
Sim. Ela deixou rastros, né? Ruins e bons, como esse de provocar um desenvolvimento de novos produtos. E deixou alguns rastros de mudança de comportamento, em questão de horário, por exemplo. Hoje em dia todos os negócios fecham mais cedo.
Acabou a boemia em São Paulo?
Eu acho que não, a gente resiste. Como tem muita gente trabalhando em casa, ou trabalhando menos horas, as pessoas estão mais rigorosas com o dia seguinte. A gente não tinha limite para parar de trabalhar. Hoje, ninguém marca reunião para depois das seis horas da tarde, a não ser que seja por zoom. Tem alguma economia de tempo, de trajeto para terminar mais cedo o expediente e começar o entretenimento mais cedo. O boêmio, talvez, seja outro cara hoje em dia. Talvez, seja um cara que vai e assiste três dias do Lollapalooza. E tem algumas coisas que são geracionais. Por exemplo, tenho um filho de 18 anos, que vai a muitas festas produzidas, com compra de ingresso digital. Então, não é uma geração que está aí na rua, à noite. A dinâmica da noite mudou, hoje em dia você compete com festa, com evento, com festival. Então, acho que a boemia está mudando, mas ela nunca morrerá.