“Caiu olhando para mim”: a cronologia da morte de estudante pela PM
Em vídeos, prints de conversa e relatos, jovem de 21 anos que estava com estudante de medicina relembra o dia da morte de Marco Acosta
atualizado
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São Paulo — “Ele me fez reconhecer quem eu sou”, revelou a jovem que estava junto com o estudante Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, quando ele foi baleado à queima-roupa por um policial militar dentro de um hotel na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, na última quarta-feira (20/11). Gabi Morena, como é conhecida Gabriele Mantey Caetano Elias, de 21 anos, relatou ao Metrópoles como foi o dia da morte de Marco.
A jovem estava em um bar com suas amigas quando viu o estudante, também conhecido como “Bilau” e Boy da VM, passar com seus amigos. Há dois anos sendo “mais do que amigos”, eles costumavam se encontrar e sair juntos com frequência.
No dia em que Marco foi baleado, Gabriele notou que ele estava bêbado. “Quando ele bebia, eu não gostava de ficar perto dele, porque ele ficava diferente, não ficava agressivo, ele não era uma pessoa ruim. Mas ele ficava diferente e eu sentia”, admitiu. Ela contou que o estudante gostava muito de beber gin. “Ele só bebia gin, ele não bebia mais nada, ele não usava drogas. Foi só isso que ele tomou nesse dia”, disse.
Ela contou que voltou para sua casa por volta de 1h e mandou mensagem para Marco, perguntando se ele ainda estava na rua. O estudante havia chamado Gabriele para ir ao Hotel Flor da Vila Mariana, local onde o jovem foi morto pelo PM. Segundo ela, os dois costumavam frequentar o estabelecimento, tanto que o recepcionista nem pedia mais o documento deles. Eles marcaram de se encontrar ainda naquela madrugada, por volta de 2h. Gabriele pediu um carro de aplicativo e eles foram para lá.
Veja a conversa:
“Quando chegamos lá, a gente pagou uma hora e subiu. Só que ele estava falando umas asneiras para mim, estava me tratando com certo desrespeito”, explicou Gabriele sobre o motivo pelo qual tentou sair do quarto do hotel (veja abaixo). “Ele jogou o travesseiro do hotel pela janela. Quando ele foi tentar jogar minha garrafinha de água, eu peguei o celular para gravar e ele parou. Nessa hora, eu tentei abrir a porta de novo e ele me deu um empurrão”, contou.
“A agressão que tanto falam é esse empurrão. Mas não tem nada a ver com a nossa discussão. Sim, ele me empurrou, eu tive que falar isso porque eu tive que falar exatamente o que aconteceu para eu [querer] sair do quarto”, relatou. Foi nesse momento que Gabriele decidiu que ia embora sem Marco.
Veja:
Ao sair do quarto, a jovem decidiu se esconder na recepção enquanto esperava seu carro de aplicativo chegar. “Eu pensei comigo mesma: ‘Eu conheço a peça, se eu for embora com ele, ele vai o caminho inteiro resmungando no meu ouvido’”, ponderou. Segundo ela, a ideia era esperar ele sair do hotel, entrar no carro e ir embora para casa.
Escondida, ela não chegou a ver o momento em que Marco pulou a escada (veja abaixo), mas o ouviu descendo. “Quando eu falo que ele é travesso, eu falo disso. Ele não é um criminoso por isso”, disse.
Veja:
No momento em que Marco saiu do hotel, ele mandou uma mensagem para Gabriele, a “cobrando” por ter ido embora daquele jeito. Ele não sabia que ela ainda estava escondida dentro do estabelecimento quando enviou a mensagem. “Eu só fui ver essa mensagem depois que o cara já tinha atirado nele. Eu acho que ele tentou entrar para me avisar, mas não deu tempo”, disse.
A última vez que Marco Aurélio Cardenas Acosta havia aberto seu WhatsApp foi às 2h48. Ele foi morto por volta das 2h50.
Veja a última mensagem que Gabriele recebeu de Marco:
O tiro
“Foi tudo muito rápido”, falou Gabriele sobre a sequência de eventos. Ela lembra de ver Marco “se defendendo, tentando”, mas ele estava encurralado. Ela estava gritando, pedindo para os policiais pararem, quando o recepcionista a puxou para o lado. “Eu ouvi o barulho do disparo em menos de 5 segundos. Foi algo que traumatizou a minha vida”, revelou.
“Eu tirei ele [recepcionista] da frente e vi ele [Marco] caindo lentamente, olhando para mim. É algo que nunca vai sair da minha cabeça. Ele olhava para mim, ele não chorava, ele não esboçava nada, ele só me olhava”, contou Gabriele. “Em menos de 2 minutos, ele [policial] baleou uma pessoa que era tudo para mim.”
A jovem foi colocada em um quarto, onde teve que ficar “presa” até o socorro chegar. Segundo ela, a ambulância demorou. Enquanto esperava, ela lembra de ouvir os agentes da Polícia Militar falando que Marco era “louco” por bater na viatura (veja abaixo). “Levaram o meu menino a troco de nada”, lamentou.
Veja o momento em que Marco bateu na viatura:
Gabi foi junto com Marco na ambulância. De acordo com ela, “negaram colocar o oxigênio nele porque ele estava se debatendo, mas não quiseram prender ele na maca e não estancaram o machucado”. Ela foi embora do hospital achando que o estudante ia apenas fazer uma cirurgia e ia sobreviver.
“Eu fiquei sabendo que ele morreu pela boca de quem atirou, horas depois de ele ter morrido”, contou Gabriele. Ela explicou que teve que perguntar aos policiais como estava sendo a cirurgia. “Ele falou: ‘[o Marco] Faleceu’, como se só eu não soubesse.”
O principal desejo da jovem neste momento era voltar no tempo. “Eu daria tudo para não ter saído de casa nesse dia, para não ter discutido com ele, para não ter ido embora”, disse.
“Eu nunca vou esquecer a carinha dele me olhando. Eu queria muito ter ajudado ele, eu queria muito poder voltar no tempo, teria deixado ele me xingar bêbado mesmo, mas eu não ia ter perdido o meu menino”, desabafou Gabi. “Ele não deve estar feliz comigo por eu estar péssima e destruída. Um pedaço de mim foi com ele. Eu daria tudo para ele estar aqui de volta.”
Pedido de ajuda
Às 2h59, Gabriele mandou mensagem para a cunhada de Marco Aurélio. “Você já deve me conhecer”, diz a jovem, começando o relato do que havia acontecido a poucos minutos. A jovem afirma ter levado o estudante para o hospital e ligado para o irmão dele, Frank Cardenas, após Marco Aurélio levar o tiro.
Gabriele faz um apelo para a família “pegar a câmera” do hotel, indicando que o circuito interno do estabelecimento registrou o acontecido. “Ele estava completamento indefeso, não revidou. Vá atrás do direito de vocês”, disse, em lágrimas.
Ela ainda escreve que “o de bigodinho”, referindo-se ao policial que efetuou o disparo, já havia enquadrado Marco Aurélio anteriormente. “Acho que marcou a cara dele.”
Veja a conversa:
“Ele iluminava minha vida”
Como tudo começou
“Eu sou a Gabriele, graças ao Marco, conhecida como Gabi Morena há pouco mais de um ano. Ele que me incentivou a começar na carreira do funk, eu não assumia. Ele falava que eu era “fiote” dele e eu não assumia, mas, realmente, eu comecei a cantar por conta dele, porque ele sempre gostou de cantar e eu ajudava ele. Foi aí que surgiu a Gabi Morena. Ele me fez reconhecer quem eu sou.”
Como era o Marco como pessoa
“O boy iluminava minha vida há mais de 2 anos, todos os dias. A gente tinha brigas, sim. Como a família dele falou, ele era um anjo travesso, isso define muito. Ele era maravilhoso com tudo e com todos, um ótimo amigo, irmão, filho e companheiro. Mas ele fazia as suas travessuras.”
“Quando eu digo que ele iluminava os meus dias, é porque já aconteceu muita coisa ruim na minha vida, uma delas foi eu perder a minha irmã, este ano. Ele estava comigo, enxugando as minhas lágrimas, falando: ‘Calma, ela está te olhando e eu estou aqui’. Ele se preocupava se eu tomava café da manhã e, quando eu não tomava, ele ia até a minha porta levar. Ele se preocupava se eu almoçava, se eu jantava, se eu estava bem. Ele estava orgulhoso de mim.”
“Ele sempre foi um menino do bem, estudioso, amigo. Ele sempre ajudou muitas pessoas na rua, eu via ele ajudando moradores de rua, crianças. Ele ajudava todos. Às vezes ele só tinha R$ 5 no bolso e ele ajudava as pessoas. Eu admirava ele por isso.”
Como era o relacionamento
“A gente nunca gostou que cuidassem da nossa vida, então a gente fingia que não éramos nada um do outro. Mas todo mundo via e comentava o quanto a gente se gostava só pelo nosso olhar. Estava na nossa cara a admiração que a gente sentia um pelo outro. A gente não se desgrudava para nada. Vai muito além de qualquer coisa, de algo casual, de dinheiro. Ele era o meu melhor amigo, ele se tornou alguém da minha família, eu contava tudo para ele. Ele era o meu diário e eu era o diário dele.”
“Ele sempre voltava da faculdade com uma história nova para contar e sempre com muita alegria no rosto. Fazendo piada, às vezes dando até raiva. Ele ficava cantando do meu lado e eu falava: ‘Meu Deus, fica quieto, eu estou ficando com dor de cabeça já’. Mas eu daria tudo para ouvir ele cantando aqui comigo. Nesse momento eu estou na rua da minha casa e todos os cantos, todos os lados, que eu olho, eu vejo ele. Eu vejo ele em todo lugar. Porque sempre que eu saía de casa, ele estava me esperando.”
“Eu não vou mais saber o que é acordar e não ter uma mensagem dele de bom dia, perguntando se eu dormi bem… Uma mensagem falando que está em um hospital novo, que viu vários bebezinhos fofinhos na área de pediatria… Me levar para comer… Eu nunca mais vou fazer nada disso com ele. Todo lugar que eu vou, eu lembro dele.”
“Quando eu ficava triste, com crises de ansiedade, ele me acalmava. Ele falava: ‘Não fica assim, você é maravilhosa’. Ele também me falava: ‘Será que a gente nunca vai dar certo?’ e eu falava: ‘É. Agora você se arrepende, agora é tarde, perdeu’, mas eu falava isso estando com ele, eu sempre estava com ele.”
Como a família lidava com a relação
“Os pais dele não concordavam muito [com o relacionamento do casal]. Mesmo assim, ele fugia para vir me ver. Ele passava por cima da mãe, dos irmãos, de todo mundo para estar comigo. E eu fazia a mesma coisa. Minha mãe já brigou tanto comigo: ‘O que você está fazendo na rua com esse menino?’. Mas não tinha jeito. Ele fazia parte da minha vida. Não tinha como. Eu não vou falar que ele era o meu melhor amigo porque quando eu falava que a gente era só amigo, ele ficava bravo. Então, eu falo assim: ‘Ele era tudo para mim, tudo.’”
“A família dele se dedicou tanto, foram 5 anos. Ele tinha 22, ia se formar bem novinho. Ele tinha tudo pela frente. O sonho dele era ser pai, ele tinha potencial para arrumar uma mulher maravilhosa, nem que não fosse eu. Tiraram isso dele. Tiraram ele da família, tiraram ele de mim. Uma vez ele falou que ele ia morrer cedo, ele falava: ‘Será que eu vou viver até os 50 anos?’”.
Estudante de medicina morto pela PM
Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, morreu após levar um tiro à queima-roupa de um policial militar durante uma abordagem dentro do hotel na Vila Mariana.
Uma câmera de segurança do estabelecimento registrou a ação. Pelas imagens (assista abaixo), é possível ver o momento em que Marco Aurélio entra correndo no hotel. Ele está sem camisa. O soldado da PM Guilherme Augusto também entra, logo em seguida, e puxa o jovem pelo braço, com a arma em punho.
Veja:
O estudante consegue se desvencilhar, quando outro policial, o soldado Bruno Carvalho do Prado, aparece e lhe dá um chute. O jovem segura o pé do PM, que se desequilibra e cai para trás. Nesse momento, o PM Augusto dá um tiro em Marco Aurélio.
No boletim de ocorrência (B.O.), os PMs alegaram que Marco Aurélio Cardenas estaria “bastante alterado e agressivo” e teria resistido à abordagem policial. Além disso, o documento aponta que, “em determinado momento, [Marco Aurélio] tentou subtrair a arma de fogo que o soldado Prado portava, quando então o soldado Augusto efetuou um único disparo, a fim de impedi-lo”.
As imagens do circuito interno do hotel mostram, no entanto, que o PM Augusto atirou após o soldado Prado dar um chute no estudante, ter a perna segurada por ele e cair para trás, desequilibrado. No vídeo (assista acima), não é possível ver Marco Aurélio tentando pegar a arma do agente – ao contrário do que foi narrado na delegacia.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), antes do momento registrado no hotel, o estudante “golpeou a viatura policial e tentou fugir”. A pasta também informou que os PMs prestaram depoimento, foram indiciados em inquérito e permanecerão afastados das atividades operacionais até a conclusão das apurações – as polícias Militar e Civil apuram o caso.
Além disso, a SSP afirmou que as imagens registradas pelas câmeras corporais serão anexadas aos inquéritos conduzidos pela Corregedoria da Polícia Militar e pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), apesar de a informação não constar oficialmente no boletim de ocorrência.