1 de 1 Cineasta Lincoln Péricles, do Capão Redondo. - Metrópoles
- Foto: Foto: Marcos Vellasco
São Paulo — A partir de um Nokia N95 doado pelo patrão da mãe, Lincoln Péricles, o LK, começou a produzir filmes de forma independente, aos 16 anos de idade. A paixão pelo cinema levou o morador do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, a conhecer oito países e três continentes diferentes. Nesta semana, ele vai até a França para a 3ª edição do Regards Satellites, festival que fará uma retrospectiva exibindo 15 obras do cineasta.
Ao Metrópoles, o diretor, roteirista, montador e educador popular, hoje com 35 anos, afirmou que não esperava que o seu trabalho o levasse tão longe.
“Quando eu comecei a fazer filme, eu esperava ser reconhecido pelo meu bairro, e tanto que eu comecei a distribuir meus filmes em banquinhas de DVD pirata, porque era o jeito que eu assistia os filmes”, disse.
Lincoln fez um acordo com os donos das bancas: a cada filme pirata vendido, o proprietário deveria entregar uma produção de LK para o cliente conhecer sua obra. Foi assim que o diretor começou a ser conhecido no Capão Redondo e, em seguida, fora do Brasil.
Entre os 18 e os 19 anos, ele fez o primeiro curta-metragem que chamou atenção de um festival de cinema. Desde então, os convites se tornaram cada vez mais frequentes.
“Já participei do New Filmmakers LA, que é um festival de cinema para novos realizadores em Los Angeles. Já participei de festival no Chile, e ganhei um prêmio agora recente de melhor curta-metragem latino-americano, no FICValdívia Chile. Já participei em outros festivais na França, como o festival de curtas de Clermont-Ferrand, que é o maior festival de curtas do mundo. Fui recentemente para o DOC Lisboa, que é um dos mais prestigiados festivais de documentário da Europa. Então, também já circulei bastante”.
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Lincoln Péricles, de 35 anos, é diretor, roteirista, montador e educador popular.
Foto: Isa Katupyryb
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Diretor de cinema independente do Capão Redondo participou de diferentes festivais de cinema pelo mundo.
Foto: Martín Zenorini
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Lincoln terá retrospectiva de 15 filmes exibidos na 3ª edição do Regards Satellites, festival de cinema francês.
Foto: Marcos Vellasco
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Lincoln diz que sua quebrada, o Capão Redondo, é indissociável da sua arte.
Foto: Marcos Vellasco
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Conhecido como LK, Lincoln Péricles tem mais de 18 filmes. Desse total, 15 obras serão exibidas em festival francês.
Foto: Priscila Nascimento
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Cineasta do Capão visitou oito países e três continentes graças ao seu trabalho, que faz de forma independente.
Foto: Isa Katupyryb
Cinema de quebrada
Criado na Cohab Adventista, comunidade dentro do Capão, Lincoln diz ser impossível desvencilhar a sua arte da quebrada. “A minha escolha é levar o nome do meu bairro para o mundo”, destacou.
O cineasta lembra da máxima “você precisa saber de onde vem para saber para onde vai” quando afirma que “é do Capão Redondo para o mundo, e o mundo vem depois, o Capão Redondo vem primeiro”.
Segundo o diretor, não é o cinema clássico europeu ou o cinema hollywoodiano que serviram como “escola” para a sua arte, mas sim o grupo Racionais MC’s, cujos membros Mano Brown e Ice Blue também são do Capão.
“Para mim, foi o Mano Brown que disse uma das frases mais complexas que eu já ouvi, que é: ‘cada favelado é um universo em crise’. Então, eu faço cinema porque eu sou mais um desses universos em crise. Eu acho que a arte, a poesia e o cinema são campos férteis para a gente olhar para esses universos com a atenção que eles merecem”.
LK aponta que há muitos talentos das periferias que são desperdiçados em detrimento de “herdeiros” e “playboys” frequentemente escolhidos para os trabalhos. Por isso, ao selecionar sua própria equipe, Lincoln escolhe dar oportunidade aos destaques que estão ao seu lado — ou em outras periferias. “Eu faço filmes para honrar os meus”, diz o cineasta.
“Durante muito tempo, a nossa voz, de quem é de quebrada, não era interessante para o cinema brasileiro. Inclusive, parecia que nós só éramos assuntos, que era interessante que nós ficássemos em um lugar subjugado. Então, quando a gente começa a levantar a nossa voz, e começa a falar pela qualidade do nosso trabalho, é porque tem uma relevância ali. Aí você começa a ver que, caramba, é parte do que a gente construiu. Tijolo por tijolo”.
Visão que vai para as telas
O trabalho é um dos temas mais presentes nas obras de LK. A razão está na origem do próprio cineasta: “Eu sou de uma família de trabalhadores, uma família indígena, migrante para a periferia de São Paulo. Então, esses são assuntos que permeiam os meus filmes”.
Lincoln disse trabalhar questões como o movimento da metrópole, especialmente do urbano para o não urbano, da periferia para o centro, e do centro para a periferia, nas películas que produz. Por isso, para ele, seu trabalho não se resume a um “cinema de periferia”, mas sim a uma maneira de dar destaque à realidade que o moldou como pessoa.
“A ideia de dirigir e produzir dentro da Astúcia Filmes, que é a minha produtora, projetos que pensam criticamente o território que nós vivemos, é justamente de sair das caixinhas que as pessoas nos colocam. Gerar oportunidades para quem está ao redor da gente, mas também fazer um cinema crítico, de qualidade, que está atento também às questões contemporâneas”, explicou.
Por isso, quando fala em cinema independente, Lincoln pensa além das formas de financiar os seus projetos. Para ele, a independência de um projeto começa no pensamento de quem o produz – o que significa ter uma visão crítica e política sobre o mundo. “Você pode fazer isso com zero reais e com um milhão de reais”, destacou o diretor.
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Enquanto se prepara para embarcar para a França e participar do Regards Satellites, Lincoln disse estar começando a escrever um filme e montando outros dois. O cineasta, que assume diferentes funções quando o assunto é trabalho, está sempre na correria. Isso não significa, no entanto, que o financiamento para as suas obras seja garantido.
Com 15 anos de carreira e 18 filmes lançados, Lincoln disse ter conseguido apenas três editais com apoio do governo. Até mesmo ir aos festivais que o convidam não é uma tarefa simples – ou ao menos não era, até recentemente.
“Nunca tive dinheiro ou condições de ir, mas agora as pessoas estão pagando para eu ir pois os filmes entraram em vitrines maiores”, explicou.
Esta será a quarta vez do cineasta na França. Ele lembra que uma ação afirmativa da SPCine o levou ao país pela primeira vez. Na época, Lincoln foi participar do festival de Clermont Ferrand.
Os contatos que fez lá proporcionaram a produção do seu próximo longa-metragem, em parceria com uma produtora francesa.
“Eu sei que o meu trabalho tem uma relevância, porque é ultra-independente, feito com zero recursos”, destacou o cineasta, que contou já ter feito um filme com o orçamento de R$ 215.
“Com esse valor, a gente conseguiu agitar duas diárias. A gente trabalhou junto e o filme até hoje circula em muitos lugares, tipo na Alemanha”, disse Lincoln. A obra a que se refere tem o título Ruim É Ter Que Trabalhar.
Os recursos financeiros, no entanto, não são os principais entraves para quem produz arte nas periferias, destacou o cineasta, que apontou as inseguranças com a própria integridade física como um grande obstáculo. “Constantemente, a gente perde um dos nossos”, destacou.
O diretor aponta que, ao produzir um cinema politicamente crítico, alguns riscos são assumidos. “Eu acho que ser um cineasta independente de quebrada, para além do risco e da falta de recurso, a gente tem o detrimento das faltas de política públicas, de um estado que chegue para nos ajudar”, apontou LK.
Festival Regards Satellites
A 3ª edição do Festival Regards Satellites começa nesta quarta-feira (29/1) e vai até o dia 9 de fevereiro. A programação terá uma pausa de dois meses, e retornará entre os dias 3 e 6 de abril. Todo o evento ocorrerá na comuna de Saint-Denis, na periferia de Paris.
O festival reúne artistas, pensadores e públicos e funciona como “um verdadeiro trampolim para cineastas independentes e inovadores”, diz o jornal francês Cinéma L’Écran de Saint-Denis.
E é justamente uma obra de Lincoln que irá abrir a programação deste Regards Satellites. Trata-se do filme O Cinema Acabou, último lançamento do cineasta.
Outras 14 obras de LK farão parte da programação, que fará uma retrospectiva de obras do diretor, produzidas entre 2012 e 2024.
“É provocar um diálogo que não se limita aos filmes na tela, mas também compartilhar momentos muito vivos de reflexão sobre o que é fazer cinema hoje em periferias, nas periferias do Brasil e da França também, e tratar a ideia de periferia como uma potência e não como uma categoria restritiva”, comenta a programadora Claire Allouche, responsável pela curadoria.
As atividades de Lincoln no festival incluem:
Masterclass “À pleines voix : La fabrique collective du cinéma” (À plenas vozes: A fábrica coletiva do cinema) ao lado de Adirley Queirós e Joana Pimenta, discutirão a participação de suas comunidades no processo criativo e a inspiração musical de seus bairros. “Os três realizam uma obra ancorada na geografia e nas histórias de seus respectivos lugares de vida, aliando ardente perseverança e irreverência formal”, informa o catálogo do festival.
A mesa redonda “Qui aime garde: prendre soin de la mémoire audiovisuelle des périphéries” (Quem ama cuida: Cuidar da memória audiovisual das periferias), abordando a conservação do patrimônio audiovisual periférico.
Encontros nas mediatecas: uma série de projeções seguidas de discussões com o diretor ocorreram nas mediatecas de Plaine Commune entre fevereiro e abril de 2025.