Facundo Guerra: “O bar sempre foi um território machista”
Empresário que criou 25 bares e baladas em SP, como Vegas e Love Story, Facundo Guerra fala da relação com a cidade, do trabalho e assédio
atualizado
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“Eu tenho um amor por São Paulo que é amor de piranha, né? Com perdão da expressão. Mas é um amor que está começando a me desgastar porque é impossível ficar nesta cidade e não sofrer de uma crise de ansiedade constante.” Não faz muito tempo, o empresário Facundo Guerra detectou em si esse estado de espírito com o qual, a bem da verdade, muitos paulistanos convivem: o amor e a rejeição à cidade.
“A gente fala de cidade como se ela fosse uma estrutura abstrata, mas ela é a somatória de todo mundo que vive dentro dela. Então, a partir do momento que está todo mundo preocupado com sobrevivência, segurança, com o amanhã, há gente ansiosa o tempo inteiro e essa ansiedade é contagiante”, diz o criador e sócio do Blue Note, do Bar dos Arcos, do Riviera, do extinto Vegas, do novo Love Story e de outros vinte bares, casas noturnas e restaurantes em São Paulo.
Em seus estabelecimentos, Facundo Guerra sempre deu atenção ao tema do assédio contra mulheres e ao público LGBTQIA+. Recentemente, o estado de São Paulo aprovou uma lei que obriga bares e restaurantes a capacitar seus funcionários para auxliar vítimas de assédio, além de adotar outras providências.
Mesmo lidando com contradições em relação a São Paulo, toda a trajetória acadêmica e profissional do empresário nascido na Argentina há 49 anos está sendo construída na cidade. É uma experiência que também o levou a ser uma espécie de guru do empreendedorismo, com a autoria do livro Empreendedorismo para Subversivos (Editora Planeta, 2017) e está para lançar um segundo título ligado ao tema.
Nesta entrevista ao Metrópoles, Facundo Guerra projeta novos passos como empresário, desfaz mitos do empreendedorismo e assume que, mesmo tendo preferência política à esquerda, gosta de lucro.
Engenheiro, pós-graduação em jornalismo internacional e ciência política, trabalho em multinacional. Em que ponto essa formação cruzou com a carreira de empresário do entretenimento e de influenciador do empreendedorismo?
Quando eu comecei a empreender, não se falava essa palavra. Isso é uma coisa muito recente, de menos de dez anos, até porque o que a gente chama de sucesso hoje foi reconfigurado. Na nossa geração, ser bem-sucedido era ser CEO. E o cara que era empreendedor ou dono do seu próprio negócio – a borracharia, a padaria –, era aquele tio coitado que não tinha capacidade intelectual. Às vezes o cara tinha muito mais grana do que um CEO mas era rejeitado pelo sistema. Se você me perguntar “quando é que você se identificou como empreendedor?”, eu vou dizer que nunca me identifiquei assim. Aconteceu de eu ter que sobreviver, depois que fui demitido de uma multinacional. Eu não queria ser empreendedor e, sendo muito sincero, até hoje eu fico pensando: pra quê?
Você está com a vida ganha?
De jeito nenhum. Se eu estivesse com a vida ganha, já tinha parado de trabalhar. Eu não gosto de trabalhar. Se eu tivesse a vida ganha eu iria fazer lição de casa com a minha filha, puxar ferro todos os dias, sair pra correr, viajar… Empreender é enlouquecedor porque você trabalha mais do que trabalharia se tivesse empregado. Quando você é funcionário, tem pelo menos um fim de semana livre no mês e, eventualmente, trinta dias de férias por ano. Eu não tenho isso.
Um dos conceitos colocados no seu livro Empreendedorismo para Subversivos era a importância de empreender com propósito. Essa ainda é sua crença?
Na verdade, ela doura essa pílula da empregabilidade precária. E você começa a falar que quando vai empreender começa a ter uma coisa que não tem no emprego, que é o propósito. Num determinado momento, é verdade, você está fazendo alguma coisa que acredita e isso é importante. Mas só é importante a partir do momento em que você tem suas necessidades básicas preenchidas. Se você não sabe se vai ter como pagar tuas contas, não tem propósito. É delicioso eu não precisar trabalhar numa sexta-feira se eu não quiser, porque eu sou dono da minha agenda. Mas a verdade é que eu também tenho que trabalhar sábado e domingo.
Você quer ser rico?
Eu não quero ser rico, eu não quero não ter que pensar na minha sobrevivência. Eu não tenho muita consideração, não gosto de conhecer gente rica, não tenho esse fetiche pelo sobrenome Matarazzo de não sei o quê, o Botelho de não sei o quê. Não admiro essas pessoas. Eu quero desejar as coisas e lutar por elas porque essa luta é que define a nossa existência. Eu não quero ter tudo. Por exemplo, estou há dois anos postergando a compra de um PlayStation 5, que custa 5 mil reais. Eu poderia ter. Mas por quê? Ainda estou jogando PlayStation 4, e está divertido, ele funciona. Não estou falando isso porque eu sou bonzinho. Eu não sou o esquerdomacho arquetípico que mora na Santa Cecília.
Como assim?
Eu gosto de lucro. Mas não quero ferrar o mundo porque eu sou pai e preciso pensar diferente das outras gerações. A gente está vivendo um apocalipse em câmera lenta. O que aconteceu no Litoral Norte de São Paulo, por exemplo, já foi caracterizado como evento climático extremo e vai continuar acontecendo, por causa da especulação imobiliária e da interferência humana. Quem provocou aquela tragédia foi o paulistano. O que provoca esse tipo de turismo predatório é a necessidade de ter uma casa na praia. Por quê? Porque a casa na praia na Barra do Sahy é um status de sucesso. Se você tiver uma casa na Barra do Sahy, meu amigo, você será o mais legal entre os seus amigos, vai ser o que deu certo. Só que uma casa na praia na Barra do Sahy vai te consumir no mínimo uns 3 milhões de reais, para você aproveitar, digamos, 40 dias no ano.
Você hoje emprega quantas pessoas?
Diretas e indiretas, talvez umas trezentas.
Isso é um peso ou um orgulho para você?
A gente romantiza o papel do empresário na nossa sociedade quando a gente fala que a gente cumpre uma função social ao dar emprego. Eu não dou emprego a ninguém. Eu exploro mão-de-obra. Qualquer burguês explora sua mão-de-obra em prol de lucro. Então vamos redimensionar o “dar emprego” porque ninguém dá emprego. A partir do momento que você não estiver produzindo valor, meu amigo, fora! Entendeu? E o fato de eu ser uma pessoa com um olhar mais à esquerda não elimina o fato de ser um burguês. Eu só não sou um burguês rentista.
Então, quantas pessoas você explora mesmo?
Eu exploro trezentas pessoas por mês. Eu não tenho como fugir dessa verdade. Então eu tento, na medida do possível, ser justo com salários, não ser um patrão escroto, opressor. Eu não posso pagar os melhores salários do mercado, então tento criar condições em que as pessoas não trabalhem infelizes e não tenham que viver com um tirano. Eu tento fazer com que essas pessoas não fiquem se martirizando, tento criar espaços que as pessoas vão trabalhar e falem: “pô, poderia ser pior”. Eu sei que nenhum emprego é ideal. Mas eu posso também criar condições nas quais, se eu tiver um chef de cozinha tirano, eu demita esse cara imediatamente.
Qual é a maior dificuldade de empreender hoje?
Capital, porque 90% se resume a financiamento e falta de educação. Educação, no caso é saber o mínimo sobre finanças, ter ferramentas de finanças pessoais. No fim das contas, para ter seu próprio negócio, não pode saber uma única coisa com profundidade, você tem que ser um generalista. Então, o jornalismo me ensinou a montar um negócio com cheiro de pauta. Ou a pensar como eu posso fazer com que a comunicação desse negócio não dependa de eu investir dinheiro em marketing. Ou que eu tenho que construir um negócio que tem uma narrativa com a história da cidade porque eu entendo que isso também fala sobre o interesse maior do jornalismo, de encontrar boas histórias e tudo mais. Tudo que eu estudei até hoje, de alguma forma, me ajudou a ser um bom empreendedor. E eu não sou um bom administrador de empresas. Estou tentando administrar mas eu não consigo, ainda tenho muita preguiça da burocracia.
Mas tem alguém que faz isso por você…
Não adianta ter alguém que faça isso por você. Eu tinha essa ideia errada de que um bom empreendedor não precisava ser um bom administrador. Que era possível contratar esse tipo de serviço no mercado. E é mentira. Por que eu não estou milionário hoje? Eu deveria estar andando de Maserati por aí. Eu fiz 25 negócios, alguns deles com uma longevidade enorme, com boate que durou quinze anos; casa de show que durou dez anos. Nunca tive um negócio que fechou antes de dois anos, suficientemente bem-sucedidos para eu ter meu payback e lucro em todos. Mas eram mal administrados. Então, hoje eu tenho que lidar com vinte anos de má administração, que me derrubam, que me fazem com que qualquer lucro que eu tenha sirva também para pagar o custo desse passado.
Por falar no passado, você ajudou a consolidar a região conhecida como Baixo Augusta, com a inauguração do Vegas, em 2005. É um pedaço da cidade que se valorizou, com empreendimentos imobiliários sendo lançados a um preço de metro quadrado mais alto. Qual é a próxima fronteira paulistana para se tornar um novo Baixo Augusta?
Eu acho que é Santa Cecília. Já está acontecendo faz algum tempo mas eu vejo negócios serem abertos ali o tempo inteiro. A Barra Funda vem acontecendo desde a década de 1990. Mas o fato é que em São Paulo cada bairro é uma microcidade e tem a sua própria identidade, a sua própria maneira de ser. O Bom Retiro poderia ter acontecido mas o metro quadrado no bairro é caro porque ele já é ocupado durante o dia. O que aconteceu de uns anos para cá foi esse deslocamento da Vila Olímpia e do Itaim para a Vila Madalena e para o centro. E irradiou do centro para a Santa Cecília, a Barra Funda e eu acho que está se deslocando novamente pro Itaim. Eu acho que é difícil de apontar para qual direção vai a cidade mas para você identificar para onde vai o capital cultural de uma cidade ,ou o empreendedorismo criativo, tem que identificar onde está o metro quadrado barato. Daí você vai ver que algum louco vai alugar um galpãozinho e vai fazer alguma coisa doida porque ele não tem dinheiro. Que foi a razão que me fez ir para a Augusta: o metro quadrado barato.
O modelo de entretenimento de clubes como o Vegas e as baladas morreu?
Eu não sei se morreu mas está na UTI, vivendo por aparelhos.
As pessoas estão mais caretas?
Muito pelo contrário. O clube criava uma certa condição de controle dos corpos que estavam ali dentro. Tinha muita segurança, muita regra. Para você ter um clube, há muitos pressupostos, alvará disso, alvará daquilo, alvará de corpo de bombeiros. E a festa, por poder ser feita num lugar temporário, não precisa de nada disso. As festas são muito menos caretas do que os clubes foram, com menos regras. Num clube você não fica pelado, não fuma cannabis na pista. Numa festa, sim. Os jovens querem hoje outro tipo de experiência e encontram isso na festa, por propiciar um lugar novo, uma locação que se transforma a cada evento.
Em seus estabelecimentos você sempre se preocupou com a questão do assédio. Que contribuição acha que deu para levantar as discussões sobre esse tema?
Eu sou pai de uma menina e tendo sido educado por muitas mulheres feministas ao longo da minha vida, tenho dor de perceber que as mulheres vivem com medo o tempo inteiro, de ser assediadas dentro de um Uber, de um bar, de uma balada ou dentro de uma casa de show, com medo de terem sua integridade física atacada. E o bar sempre foi um território muito machista. Se uma mulher estiver sentada no balcão de um bar, sozinha, vai ser tachada de prostituta. Na cultura pop é assim, nos filmes, se uma mulher vai tomar um drinque, ela está procurando um macho. Então, construir um bar que fosse seguro para as mulheres era também uma maneira de me diferenciar do mercado.
E em qual deles você conseguiu isso?
No Bar dos Arcos (no subsolo do Teatro Municipal de São Paulo) eu consegui fazer isso muito bem. Mas eu tive que ter uma sócia mulher, a gerência e a cadeia de operação composta por mulheres, usar uma brigada que venha da comunidade LGBTQIA+, porque nessa comunidade você identifica o que é assédio muito mais rapidamente.
O que é assédio?
Assédio é tudo que vem depois do não. O território do assédio é o não-assédio, o limite que é imposto pela mulher. Tem coisas que a gente entende que nós, homens, somos educados que um “não” é um “sim”. Isso vem de uma cultura de estupro: que se você insistir bastante, o “não” vira “sim”. Eu ouvi isso muitas vezes na minha vida. A gente é educado para pensar que se for a um bar com alguns amigos e achar uma mulher interessante, pode mandar um drinque para ela. Isso era lido como cavalheirismo mas hoje em dia isso é abusivo.
Mas os bares estão orientando suas equipes a consultar as mulheres antes de levar os drinques, não?
Não, não sou muitos os bares que fazem isso. Pode testar: se você for a um bar, chamar o garçom e mandar um bilhete para a mesa tal, 90% da brigada vai fazer isso. Você não tem o treinamento que fala assim: “gente, se a mulher está tomando um drinque com uma amiga num bar, ela quer ficar quieta. Se ela não quiser ficar quieta, ela vai mandar o bilhete para uma mesa, simples assim. Deixem a mina quieta.”.
Em 2021 você comprou a boate Love Story – um lugar histórico e eclético, que reunia de profissionais do sexo a artistas – e vai reabrir no meio deste ano, como um cabaré, com a ideia de “desmistificar o sexo a partir de uma perspectiva estética e com inspiração erótica”. Num contexto atual de assédio, essa segue sendo a ideia?
A minha primeira preocupação foi trazer uma sócia, uma mulher, porque não faz sentido ter esse discurso todo sem ter uma mulher como sócia. Ela, na verdade, é a responsável pela maneira como a gente está construindo o lugar. O segundo passo é pensar se tem uma paridade no modo como eu vou tratar homens e mulheres ou se há algum desequilíbrio. A gente vai trazer, por exemplo, dançarinas de pole dance. Vai ter uma mulher branca, linda, magra, loira, fazendo pole dance e vai ter ainda uma menina trans de barba dentro da nossa programação artística. Isso dá igual peso e medida para mulheres, homens e corpos trans.