Autodidata, ex-coveiro Popó ensina história e arte em cemitério
Migrante nordestino, Popó começou a guiar visitas no Cemitério da Consolação há mais de 20 anos. São cerca de 300 visitantes mensais
atualizado
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São Paulo — “Quem aqui tem medo de cemitério?”, pergunta um senhor de estatura mediana, vestido com roupas formais sóbrias, um chapéu bege e um microfone acoplado na cabeça. Mais de 50 pessoas se aproximam aos poucos, com olhos e ouvidos atentos. Francivaldo Almeida Gomes, de 57 anos, conhecido como Popó, tinha acabado de iniciar mais uma visita guiada no Cemitério da Consolação, no centro de São Paulo.
Ele conduz pessoas interessadas na arte tumular e na história do local desde 2002. “Temos aqui dentro aproximadamente 8.500 túmulos e 300 obras de arte”, conta. A Marquesa de Santos, a Domitila de Castro Canto e Melo, que ficou marcada na história brasileira por ter sido amante de D. Pedro I, está enterrada lá. Assim como Tarsila do Amaral, Mario de Andrade e Oswald de Andrade.
Em 1930, Oswald levou Pagu para que se casassem em frente ao jazigo dos familiares dele.
São cerca de 300 visitantes por mês nesses passeios guiados por Popó às segundas-feiras. Nos outros dias da semana, ele trabalha em uma das Casas de Cultura vinculadas à Secretaria Municipal de Cultura.
O ex-coveiro ganhou o apelido pela aparência semelhante à do boxeador brasileiro. Irmão de cinco, é natural de Crateús, no Ceará. Veio para São Paulo em 1986, em busca da tão divulgada à época “melhor qualidade de vida”.
Na capital paulista, trabalhou inicialmente na construção civil, ajudando a levantar prédios na cidade. Depois, foi porteiro. Popó diz que essa foi a fase em que “trabalhou com vivos”. Isso porque, em 1998, depois de prestar um concurso da Prefeitura de São Paulo, foi direcionado em 2000 ao cargo de sepultador no Cemitério da Consolação.
Trabalhar com a morte não foi simples no início. Nos primeiros 20 dias, Popó não conseguia fazer uma refeição completa e só ingeria líquidos. “Eu me deparava muito com o sofrimento das pessoas de perder alguém e acabava me envolvendo”, explicou ao Metrópoles.
Numa ocasião, quase morreu sufocado ao ficar preso entre um caixão e as paredes do túmulo, até os colegas conseguirem retirá-lo. Hoje em dia, o resultado do trauma é a claustrofobia. “Se eu conseguir andar de uma estação a outra de metrô, é uma glória”.
Professor
Popó conta que teve como professor o advogado e historiador Délio Freire dos Santos, que por duas décadas foi administrador do Cemitério da Consolação. “Eu via alguns alunos sendo monitorados pelo professor Délio, e aí eu ia varrendo e me aproximando, escutando tudo que ele falava”, conta Popó.
Popó anotava perguntas nas costas de suas mãos. Délio respondia todas. Ao término do serviço, o então sepultador se encaminhava à Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, para tirar as dúvidas que ficavam das conversas.
“Acabei descobrindo o amor que ia aumentando pela arte, pela história. Quando você tem um professor que nunca fala a palavra não, isso vai te incentivando a buscar mais, pesquisar mais, perguntar mais sobre a história do cemitério”, contou Popó.
“Minha faculdade é o Cemitério da Consolação”, diz o guia ao passar pelas primeiras lápides da visita guiada em uma segunda-feira de julho.
Restos mortais de quem nomeou as ruas da cidade
“Você, fala para o Popó qualquer nome de rua dentro da cidade de São Paulo que tenha o nome de pessoas”, diz o guia apontando para uma mulher em meio aos visitantes. “Faria Lima”, respondeu. “Foi prefeito de São Paulo, não está no nosso cemitério, está em um cemitério chamado Campo Grande na região de Santo Amaro”, anunciou Popó com os olhos fechados, cabeça baixa, focando ao máximo para acessar os dados de sua memória.
O empresário Adilson Nicoletti, de 60 anos, pergunta sobre o Barão de Itapetininga, sua cidade natal. Popó responde que estava no Cemitério Venerável Ordem Terceira Nossa Senhora Carmo, que divide parede com o Consolação. “O Popó é um cara sensacional, um entusiasmado, um cara que ama o que faz e que está transmitindo um pedaço da história”, disse Adilson à reportagem.
A guia de turismo Sabrina Cordeiro, de 29 anos, chamou ex-coveiro de “enciclopédia ambulante”.“O Popó é muito divertido, tem muito conteúdo. Qualquer pergunta ele já separava várias respostas”, comentou.
Os Vencedores
Caminhando para o fim da visita, Popó para em frente a seu túmulo preferido, decorado em mármore negro e composto por três níveis. “Os Vencedores”, de Luigi Brizzolara, decora o túmulo da família Machado. Na escultura, é possível ver uma tocha sendo passada adiante. “O rosto da frente está desfalecendo, como se estivesse morrendo, mas ele está segurando a tocha, a chama da vida, e passa para um atleta mais jovem levar à frente”, explica Popó.
“É a passagem do ofício para ser dado continuidade. O meu professor está enterrado lá atrás e hoje estou levando a tocha para frente”, diz, referindo-se a Délio Freire.
Popó é pai de três homens. O mais velho, Patrick, trabalha na administração do Cemitério da Consolação e tem interesse em um dia seguir os passos do pai como guia do cemitério. Mas Popó está longe de largar o ofício.
“Eu não me aposentei ainda, então sigo contando a história”, diz ele. “Vamos manter a memória da cidade viva dentro de um cemitério. Não quero perder a memória de cada um enterrado aqui e deixá-los em esquecimento.”
Depois de passar pelo maior mausoléu da América Latina, o da Família Matarazzo, Popó finalmente reúne todos os visitantes em um círculo perto do pórtico de entrada do cemitério.
“Falar de morte é difícil, mas a gente vai tentando quebrar o tabu. Hoje, eu estudo a morte para melhor compreender a vida”, diz o guia, com a fala seguida pelo som de aplausos.