Estado “terceiriza” regulação de áreas para o PCC, diz pesquisadora
Pesquisadora sobre o PCC, Camila Nunes Dias afirma que facção criminosa atua como “agência reguladora” nos presídios e periferias de SP
atualizado
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São Paulo – Maior facção criminosa do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC) completa 30 anos de existência em 2023. Além do controle do crime organizado, do tráfico de drogas e dos presídios, o grupo também atua como uma espécie de “agência reguladora” do controle social em algumas áreas, especialmente nas periferias.
É o que avalia a pesquisadora Camila Nunes Dias, especializada na facção criminosa. Doutora em Sociologia pela USP e professora da Universidade Federal do ABC. ela afirma que o Estado acaba “terceirizando” o controle de certas áreas para o PCC.
Entre os exemplos de regras impostas pelo PCC, estão a proibição de venda de maconha sintética, conhecida como spice, na Cracolândia, no centro da capital paulista, o veto a empinar moto nas comunidades (foto em destaque) e até uma suposta ordem para acabar com as brigas entre as torcidas organizadas dos clubes de futebol.
“É como se o Estado terceirizasse para o PCC a regulação e o controle social em algumas áreas. Isso é muito claro nas prisões. Mas na grande parte das periferias e favelas de São Paulo também acontece. Já vi casos, por exemplo, do PCC interferir em companheiro que agride a mulher, os filhos. Muitas vezes esse controle se espraia para questões que envolvem as relações na comunidade”, afirma Camila Dias.
Em entrevista ao Metrópoles, a coautora do livro “A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, afirma que, embora viva seu momento de maior hegemonia no crime organizado brasileiro, a facção passa atualmente por uma tensão entre seus valores “ideológicos”, de autoproteção dentro das cadeias, e as ambições econômicas de seus membros oriundas do tráfico de drogas.
Confira os principais trechos da entrevista concedida por Camila Dias ao Metrópoles:
Nessas três décadas de existência, o PCC vive hoje sua fase de maior poder?
Do ponto de vista econômico e da influência e expansão territorial nacional e até internacional, dá para dizer que sim. Mas é também um momento de algumas tensões. No sentido de pressões para que o PCC se torne outra coisa em relação ao que é sua essência: uma organização de base prisional, que é o seu fundamento ideológico. Há o outro lado, que é o econômico, dos mercados. Isso permitiu um crescimento exponencial dos lucros de alguns dos seus integrantes e produziu, de certa forma, um distanciamento desses indivíduos em relação à parte mais ideológica.
Faz sentido a comparação entre o PCC e os cartéis mexicanos de drogas?
Tem mais diferenças do que semelhanças. Quando a gente fala cartéis mexicanos, são grupos fundamentalmente criados com o objetivo de produzir e vender drogas. O PCC não é um cartel, é uma organização criminal que tem bases nas prisões. Só alguns anos depois de se constituir como organização que o PCC veio a atuar no tráfico de drogas. A prisão foi potencializando a capacidade do PCC de protagonizar esse comércio, foi permitindo à facção ampliar as suas redes. Principalmente através das milhares de pessoas que são presas e que estão na ponta desse comércio. Elas são angariadas para essa rede do PCC, onde têm oportunidades de crescimento.
O maior erro dos sucessivos governos tucanos em São Paulo no combate ao PCC foi a política carcerária?
Eu diria que houve equívoco da política carcerária e da política de segurança pública. Porque o PCC cresce fora e cresce dentro. E o impulso para esse crescimento vem basicamente dos mesmos fatores. Um Estado que aparece para essa população de onde vem o PCC – população pobre, negra e periférica – apenas na sua face violenta da polícia: isso é um alimento ideológico básico para o PCC. Eu diria que o massacre do Carandiru [ocorrido em 1992] é o impulsionador básico para a criação da facção. Mas não é só o governo de São Paulo. Eu acho que é difícil encontrar algum governo que propõe algo diferente, inclusive os governos do PT. Não vejo nenhuma mudança substantiva na posição dos governos ditos de esquerda ou ditos progressistas quanto ao sistema carcerário.
Recentemente, as torcidas organizadas de clubes de futebol em São Paulo proibiram seus integrantes de brigarem depois de uma suposta ordem do PCC. Há alguns anos é possível ver faixas em bairros da periferia em que o PCC proíbe motoqueiros de empinar motos. Também se fala que as quedas nos homicídios têm a ver com o domínio da facção no crime organizado. Há um poder paralelo?
Eu não diria que é paralelo. Eu diria que, dentro e fora das prisões, é como se o Estado terceirizasse para o PCC a regulação e o controle social em algumas áreas. Isso é muito claro nas prisões. Mas na grande parte das periferias e favelas de São Paulo também acontece. Já vi casos, por exemplo, de o PCC interferir em companheiro que agride a mulher, os filhos. Muitas vezes esse controle se espraia para questões que envolvem as relações na comunidade. Isso inclui esses exemplos das motos e até o uso de produtos: em geral, nas favelas, não se permite o uso do crack. É por isso que muitas vezes os usuários acabam migrando para a Cracolândia. Essa também é uma diferença para os cartéis. Os cartéis até podem fazer algum tipo de regulação similar em alguns locais, mas não é uma atividade prioritária para eles. Para o PCC, é.
E em relação aos homicídios?
Na minha avaliação, não há nada mais lógico e óbvio do que pensar que foi essa regulação do PCC sobre o mercado de drogas, principalmente, mas também sobre outros conflitos sociais na periferia, que produziu esse tombo nas taxas. Não é porque são bonzinhos. Trata-se de uma dinâmica do próprio mercado. Um mercado pacificado, que tem um só grupo que vende e regula a venda no varejo, que não tem disputa ou rivais significativos. Nas pesquisas etnográficas, nas periferias e nas prisões, não há uma pessoa que não vá admitir que é proibido matar nas quebradas sem autorização e mediação do PCC. De certa forma, a facção colocou um ritual, uma burocracia para o homicídio. Eu não tenho dúvida que isso tem um impacto nas estatísticas de homicídio.