MPSP: entenda esquema que paga catadores com cachaça na Cracolândia
Relatório do MPSP explicou como funciona cadeia ilícita de ferros-velhos no centro de SP, na Cracolândia, que explora dependentes químicos
atualizado
Compartilhar notícia
São Paulo — Um relatório do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) apurou que há indícios de que dependentes químicos trabalham em estabelecimentos de ferro-velho e reciclagem no centro de São Paulo, na região da Cracolândia, e são compensados com pequenas quantidades de entorpecentes ou bebidas alcoólicas, como doses de cachaça.
A investigação é do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPSP, instaurada com o objetivo de apurar a atuação de organizações criminosas na região central da capital. Elas formam um ecossistema de atividades ilícitas, como o tráfico de drogas, a corrupção passiva e ativa de agentes públicos, a lavagem de capitais, dentre outros.
“Nos estabelecimentos de ferro-velho/reciclagem, são frequentemente observadas cenas de degradação e exploração humana”, cita o relatório. “Em diligências in loco, foi constatada a presença de crianças em ambientes extremamente insalubres e exercendo atividades laborais, constituindo grave violação de direitos humanos”, além da exploração de dependentes químicos.
Esses dependentes, em troca de pequenas quantias de bebidas destiladas ou drogas, “realizam tarefas exaustivas e perigosas, sem qualquer garantia de direitos trabalhistas, segurança ou dignidade humana”, diz o documento.
Imagens obtidas pela TV Bandeirantes flagraram catadores sendo pagos com doses de cachaça (veja abaixo). Nas imagens, um catador entra no galpão da empresa Minas Reciclagem e entrega fios de cobre e peças de alumínio. O atendente pesa e recolhe os materiais e lhe dá duas doses de pinga, que o homem bebe de uma vez, ali mesmo no balcão.
Equipes de campo do Ministério Público registraram imagens de sacos volumosos sendo movimentados na mesma empresa, provavelmente carregados com “limalha”, que são partículas metálicas resultantes do processo de raspagem.
“Há indícios de que esses materiais são provenientes de uma cadeia ilícita e que envolvem a utilização de mão de obra de pessoas em situação de vulnerabilidade”, diz o MPSP.
Grupo criminoso
Ao todo, são 23 alvos, entre pessoas físicas e jurídicas, na investigação do MPSP sobre o grupo criminoso que explora as recicladoras de lixo e ferros-velhos.
O MPSP averiguou que, majoritariamente, os galpões de reciclagem e ferro-velho são de propriedade da mesma pessoa e/ou família, formando uma cadeia estruturada de operação.
Foi apurado ainda que as empresas mudam de localização, estrategicamente, para se manter próximas ao “fluxo” da Cracolândia, garantindo assim seu abastecimento.
Dessa forma, o esquema abrange desde o recebimento de materiais recicláveis coletados por usuários de drogas, passando por empresas intermediárias que realizam a compactação do lixo, até o possível encaminhamento desse material para grandes empresas do setor de reciclagem.
A Novelis, autointitulada a maior recicladora de alumínio do mundo, compra matéria-prima da Minas Reciclagem, por exemplo.
Em nota enviada ao Metrópoles, a Novelis disse que “repudia a conduta supostamente praticada pelo referido fornecedor, com quem não possui mais relação comercial”.
“A companhia esclarece que mantém um programa de compra de sucata de pequenos fornecedores, com o objetivo de aproximar a indústria dos elos iniciais da cadeia de reciclagem, beneficiando uma ampla rede de catadores individuais, cooperativas, dentre outros agentes. É importante ressaltar que a Novelis adquire aproximadamente 450 mil toneladas de sucata ao ano, e o total comprado do fornecedor investigado representa menos de 0,03% de tal volume”, diz o texto.
“A Novelis reforça, ainda, que segue rigorosos padrões de ética, integridade e compliance, independentemente do volume adquirido, e que continuará aprimorando os seus protocolos de cadastro, homologação e monitoramento de fornecedores, de forma a evitar que situações como essa se repitam”, enfatizou.
Materiais de furto e roubo
Em uma das diligências, foi registrada uma grande fila (veja abaixo) de pessoas aguardando para vender objetos. Um fato que chamou a atenção foi que os volumes carregados para venda não pareciam ser materiais de papelão ou plásticos.
“Pela forma de acondicionamento, os volumes aparentavam ser objetos pesados e itens com indícios de serem oriundos de furto ou roubo”, diz o MPSP.
Ao observar uma caçamba no interior de um estabelecimento (veja imagem acima), o MPSP apontou a existência de alguns feixes contendo canos plásticos, ou de material semelhante, na cor cinza, aparentando ser produtos novos, nunca utilizados, incompatíveis com produtos descartados.
Mais uma vez, levantou-se a possibilidade de serem produto de furto ou roubo, fato recorrente na região central.
Ao fim do relatório, destaca-se que a maior parte dos galpões de reciclagem e ferro-velho operam sem a devida certificação da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), necessária para exercer legalmente suas atividades.
Ou seja, esses estabelecimentos estão atuando em desacordo com as exigências estabelecidas pelas leis e regulamentos ambientais, o que configura “uma clara violação das normas que regem o setor”. O MPSP ressalta que “a falta de certificação não só compromete a legalidade das operações, mas também coloca em risco a saúde pública e o meio ambiente”.