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“Escola virou depósito de criança”, diz psicóloga que atuou no massacre de Suzano

Em entrevista, psicóloga Luciana Inocêncio fala da experiência no massacre de Suzano e reflete sobre a onda de ataques a escolas no Brasil

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Psicóloga Luciana Inocêncio
1 de 1 Psicóloga Luciana Inocêncio - Foto: Robson Foiadelli/Divulgação

São Paulo – Especialista em atender emergência e situações de crise, a psicóloga Luciana Inocêncio estava na linha de frente do tratamento de vítimas do massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo, que terminou com 10 mortos e 11 feridos, em março de 2019.

O ataque que chocou o país também marca uma onda de violência nas escolas brasileiras, com casos cada vez mais frequentes desde então. De lá para cá, foram mais quatro atentados em São Paulo e outros 14 nos demais estados. O mais recente aconteceu no Colégio Estadual Professora Helena Kolody, em Cambé, no Paraná, na última segunda-feira (19/6).

Em entrevista ao Metrópoles, Luciana fala da sua experiência em Suzano, reflete sobre o que está por trás da série de ataques e explica o que o Brasil ainda não aprendeu, mesmo com esses episódios.

“Não é só a hora do ataque que importa. Você reforma a escola, acolhe em um primeiro momento, isso dura alguns meses, mas e depois? Para quem perdeu o filho, a dor não dura um mês, dois meses ou um ano.”

Confira abaixo os principais trechos da entrevista de Luciana Inocêncio ao Metrópoles.

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Psicóloga Luciana Inocêncio estudou na Raul Brasil
Psicóloga Luciana Inocêncio é especialista em situações de crise
Psicóloga Luciana Inocêncio
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Psicóloga Luciana Inocêncio atendeu vítimas do massacre em Suzano

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Psicóloga Luciana Inocêncio estudou na Raul Brasil

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Psicóloga Luciana Inocêncio é especialista em situações de crise

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Psicóloga Luciana Inocêncio

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Só em 2023, o Brasil já registrou sete ataques em escolas, um recorde absoluto, e a gente ainda nem chegou à metade do ano. O que está acontecendo?

Antigamente, a escola era sinônimo de segurança. O pai deixava o filho, o seu bem mais precioso, e podia ficar tranquilo. Agora, ele não sabe se vai buscá-lo em um caixão. Esses ataques são resultados de vários fatores. O problema já vem há mais de 20 anos no Brasil, sempre com a questão do bullying por trás, mas piorou. O quadro de hoje é o seguinte: há um adoecimento psíquico maior, principalmente de crianças e adolescentes, e uma enorme dificuldade por causa da desestruturação familiar. Tudo isso acaba recaindo sobre a escola, que já era sobrecarregada e agora tem responsabilidades a mais.

Se a escola está sobrecarregada, quem deve socorrê-la?

Todo mundo, mas principalmente as famílias. A função da escola é desenvolver o aprendizado, a cidadania e a socialização das pessoas. A educação de regras, limites e tolerância deveria vir de casa. Todo ataque é praticado por uma pessoa que, enquanto sujeito pensante, tem ética, moral e limites. Não adianta só levar o filho às 7h e ir pegá-lo às 19h. A escola em si virou depósito de criança. Precisando lidar com uma sala de 40 alunos, como o professor vai conseguir ensinar, alfabetizar, corrigir e, ainda por cima, ver se a criança tem algum problema de comportamento? Ele precisa ser mãe, médico, psicólogo, policial… Não dá conta.

Bullying é uma realidade das escolas desde sempre. Por que não havia tantos casos antes?

A adolescência é conflituosa por si só, mas a forma emocional e comportamental como os nossos jovens lidam com os conflitos mudou. O adoecimento psíquico está maior, os números são muito claros. O bullying ganhou mais peso em quem pratica e em quem é vítima. Como a vítima já está fragilizada, ela adoece psicologicamente, com transtornos de ansiedade, fobia social, depressão. Muitas vezes, acaba desenvolvendo um sentimento de vingança, ira, ódio. Aí que está o problema. O ataque é uma das maneiras que ela encontra para lidar com aquilo e pedir socorro.

Foram 25 atentados registrados em escolas do Brasil desde 2002. Em todas as vezes, o agressor era do sexo masculino. Por que sempre é um homem?

Talvez, isso esteja associado à cultura do homem de falar menos e ter mais dificuldade de expor o que sente. Alguns perfis de agressores são de pessoas muito introspectivas, fechadas no próprio mundo. Mas não vejo necessariamente que os ataques em escolas sejam próprios do masculino. Se a gente for analisar cada um, vai ver que a desestruturação familiar é um elemento presente. Essa criança não tem abertura em casa para dizer que está passando por problemas.

Toda vez que há um novo ataque, voltamos a discutir medidas de segurança nas escolas, como contratação de policiais, botão do pânico, câmeras. Isso resolve?

Por que ninguém conseguiu formar protocolos efetivos de segurança até hoje? Só isso não adianta. A escola deveria ser um lugar de liberdade e, daqui a pouco, nós vamos transformá-la em presídio, com grades, detector de metal… Falta o diálogo entre políticas de educação, de segurança pública e de saúde mental. As três são importantes e precisam andar juntas. Se a família e a escola não conseguem perceber que o estudante está diferente e anda com comportamento estranho, isso é um problema de saúde mental.

Para um ataque se concretizar, precisamos ter deixado de identificar um possível agressor. Depois, ele ainda tem que entrar na escola e conseguir machucar as pessoas. Quer dizer: quando um ataque acontece, significa que nós falhamos muitas vezes?

Entende que há consequências em cadeia? O sujeito não faz o ataque de uma hora para outra, ele fica meses ou até anos planejando. O caso mais recente, em Cambé (PR), foi assim. O rapaz tinha 21 anos e saiu da escola em 2014; ele não matou pessoas que fizeram bullying com ele. Na Raul Brasil (em Suzano) aconteceu a mesma coisa. A questão toda é o que a escola representa. O ataque é uma vingança contra o que a instituição representa, e não contra um indivíduo. E por que na escola? Porque é lá onde tudo aconteceu na vida daquele sujeito, as coisas boas e as coisas ruins.

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Então, qual é a solução?

Trabalhar com prevenção. A escola precisa ter abertura para dizer: “Olha, o seu filho não está bem”. Só que, para perceber isso, a escola tem que ter profissionais adequados. É necessário ter uma equipe de psicólogos que façam trabalhos preventivos, grupos terapêuticos, treinamento de professores. O problema é que a gente só olha para a questão com o viés da segurança. A solução para esses ataques envolve trazer as famílias para perto, fortalecer a comunidade escolar, cuidar da saúde mental. É um conjunto de coisas.

A senhora atendeu vítimas do massacre da Raul Brasil, em Suzano, um dos mais violentos. Desde então, o número de ataques só cresce, e muitos agressores citam aquele episódio como “inspiração”. O que a gente não aprendeu em 2019 e continua sem aprender até agora?

Não aprendemos a prevenir. Assim que aconteceu o ataque na Raul Brasil, colocaram psicólogos na escola. Depois, o que São Paulo fez para a prevenção em outras unidades? Cadê as equipes multidisciplinares trabalhando em conjunto nas escolas? O que as escolas oferecem de combate ao bullying? Quais são os programas? Como estão sendo implementados? O que estados, prefeituras e governo oferecem de proteção? Porque o que tem, os números mostram, não está sendo eficaz.

O jornalismo falha na cobertura dos ataques? Como equilibrar o noticiário, dando a devida relevância a um fato como esse e minimizando os riscos de a divulgação ser um gatilho para novos casos?

Eu acho que falha, porque mantém o foco na segurança pública, nunca na saúde mental. A discussão fica em cima da questão de como o ataque foi realizado e qual era o planejamento, quando, na verdade, ela deveria estar direcionada para tratar da prevenção. Não divulgar detalhes de quem cometeu o ataque já ajuda.

Como a senhora ficou sabendo do ataque em Suzano?

Ao vivo e a cores. Eu estudei naquela escola e moro a um quarteirão de lá. Naquela manhã, fui para a academia, estava voltando para casa e estranhei porque encontrei a minha rua fechada. Tinha muito helicóptero e equipes de televisão na hora. Veio um policial civil, muito apavorado, e me falou do ataque: “Eu nunca vi um negócio desses”. Ele tremia. Aquele policial me marcou muito.

Em que momento a senhora começou a atuar no caso?

Eu tenho especialidade em situações de emergência e, assim que entrei em casa, recebi um telefonema em que perguntavam se poderia eu dar um auxílio na base de apoio que havia sido montada na rua de trás. Quando cheguei lá, estava tudo cru. Havia equipes de saúde mental do município, os psicólogos da rede, e era isso. A gente ainda não sabia quem eram as vítimas, e foram colocando todos os familiares lá… Imagina a bagunça. Fomos ligando para as pessoas, chamando voluntários, formando as equipes.

Isso no dia do ataque?

Na hora do ataque, coisa de 40 minutos depois de acontecer. No primeiro momento, a gente foi levando os familiares para uma sala, com psicólogo e assistente social, para dar a notícia sobre as vítimas. O cenário era o pior possível, todo o quadro era terrível, mas nós conseguimos tornar aquilo mais humano.

O que se fala para as famílias numa hora dessas?

O desespero maior foi na hora do ataque. Muitos alunos correram, os vizinhos saíram abrindo as portas para protegê-los, ninguém sabia direito onde as pessoas estavam. Quando montaram a base de apoio, o pior momento já havia passado. Se o filho ainda não tinha chegado em casa ou o celular tocava e ninguém atendia, os pais já sabiam que podiam receber aquela notícia. No coração deles, eles já sabiam. De toda forma, o acolhimento faz toda diferença, e a informação foi dada da maneira mais humana possível. Eu me lembro da filha de uma das vítimas, que me dizia: “Só queria poder ter abraçado minha mãe antes de sair de casa, nunca mais vou poder abraçar a minha mãe”. Eu me lembro de cada angústia, de cada olhar… É um cenário inesquecível. Eu dizia a todos eles que queria tirar a dor que estavam sentindo, mas que não tinha esse poder.

Quando a escola reabriu, a senhora também estava lá?

Sim, acompanhei a reabertura por algumas semanas, fiz rodas de conversa com alunos e funcionários. Quem não tinha condições de ir para a escola, por questões psíquicas, a gente ia atender em casa. É importante lembrar que não é só a hora do ataque que importa. Você reforma a escola, acolhe em um primeiro momento, isso dura alguns meses, mas e depois? Para quem perdeu o filho, a dor não dura um mês, dois meses ou um ano. É fundamental estar atento a isso. Existem familiares de vítimas da Raul Brasil que se suicidaram depois.

Trauma tem cura?

Tem cura e tem tratamento. Eu abri meu consultório voluntariamente para quem quisesse se tratar. Por muito tempo, a história da Raul Brasil não saiu da minha sala. E, se você quer saber, muitos ex-alunos que passaram pelo tratamento estão bem, fazem faculdade e conseguiram seguir a vida.

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