Documentos revelam atuação da “família das falências” na Justiça em SP
Juiz da vara de falências e recuperação judicial de São Paulo nomeia advogado parceiro de seu irmão em processos que somam R$ 1,1 bilhão
atualizado
Compartilhar notícia
São Paulo — Em dezembro de 2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TSJP) criou duas varas regionais para julgar disputas empresariais e casos de falência e recuperação judicial. São processos que podem envolver cifras bilionárias. Somente a primeira vara empresarial julga processos de 29 cidades paulistas. Há três anos, o titular dela é o juiz Marcello do Amaral Perino.
Documentos obtidos pelo Metrópoles revelam uma série de elos entre processos que estão com o magistrado e a atuação de seu irmão, Fernando Perino, como advogado. Em um dos casos, um empresário narra, em um documento público, a interferência de Fernando e de um parceiro dele chamado Fábio Rodrigues Garcia em uma disputa societária sob julgamento de Marcello.
Desde 2020, o juiz nomeou em seis processos que julga esse advogado parceiro de seu irmão como administrador judicial e síndico de falências, funções de confiança e de livre escolha dos magistrados. Na recuperação judicial, o administrador é responsável por fiscalizar as contas da empresa, entregar relatórios à Justiça e garantir que o plano de pagamento dos credores seja feito dentro do cronograma.
Em alguns casos, ele também é nomeado como interventor, assumindo até mesmo o comando integral da empresa. Para isso, ganha honorários de até 5% sobre o valor da dívida da companhia que entrou em recuperação judicial. Nos seis processos para os quais Garcia foi nomeado por Marcello, os valores das dívidas das empresas somam R$ 1,1 bilhão.
Nomeações em grandes casos
Entre os casos nas mãos de Garcia em razão da nomeação feita pelo juiz Marcello Perino estão insolvências grandes. Uma delas é a falência da fábrica de chocolates Pan, conhecida pelos produtos em forma de cigarrinhos, moedas e lápis. As dívidas chegam a R$ 263 milhões.
Recentemente, a fábrica da Pan em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, foi adquirida pela Cacau Show por R$ 70 milhões. O leilão está sendo contestado por uma concorrente porque a proposta vencedora prevê pagamento parcelado em 30 meses e a outra empresa havia oferecido R$ 65 milhões à vista. Usualmente, em casos de falência, há prioridade para a venda sem parcelamento.
O leiloeiro é formalmente nomeado pelo juiz, em uma decisão que usualmente passa pelo conhecimento do síndico da falência. O Metrópoles apurou que haverá uma ação no TJSP contra o resultado do leilão.
Marcello também nomeou Garcia no processo de recuperação judicial (RJ) da Mont Fort, empresa de compra e venda de imóveis que tem dívidas de R$ 60 milhões. O caso ficou em segredo de Justiça até a última sexta-feira (20/10), um dia após a reportagem questionar o motivo do sigilo de uma RJ.
A Mont Fort pertence a um bilionário dono de veículos de comunicação e, segundo relatórios do advogado, tem apenas dois funcionários. Documentos obtidos pelo Metrópoles evidenciam que a recuperação está recheada de acusações de fraudes.
Credores acusam a entrada e saída de dinheiro do caixa da empresa como se ela tivesse se tornado uma conta de passagem para outras empresas da família, além de denunciarem uma manobra para que a namorada do proprietário comprasse o maior crédito da recuperação das mãos de um banco que se opunha ao processo.
O juiz Marcello Perino abriu uma apuração sobre as fraudes, mas a encerrou tempos depois, antes do término. O TJSP acolheu um recurso e mandou reabrir a investigação.
Acusação e negócio
Homem de confiança do juiz Marcello e parceiro do irmão dele, o advogado Fábio Rodrigues Garcia é acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de usar sua antiga banca de advocacia para lavar dinheiro para uma das empresas da máfia da merenda na Prefeitura de São Paulo, desmantelada em 2007 — ele alega inocência. A ação ainda não foi julgada e corre em segredo de Justiça. O MPF pediu para que a Justiça reconheça a prescrição do caso.
No mesmo ano em que Marcello assumiu a vara empresarial, em 2020, Garcia fez negócios com o irmão do juiz. Documentos obtidos pelo Metrópoles mostram que o advogado deu procuração para Fernando Perino atuar em uma ação de cobrança de R$ 17 milhões. A atuação conjunta da dupla não é facilmente identificada porque mesmo Garcia tendo conduzido o caso desde o início é somente o nome de Fernando, que assina uma única petição, que aparece no cabeçalho do processo.
Os irmãos e as falências
Os irmãos Perino vêm de uma família importante do Judiciário paulista. A mãe deles foi desembargadora do TJSP e era procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MPSP) quando Marcello entrou para a magistratura, em 1994. Antes, era delegado de polícia no litoral sul paulista. Já Fernando se formou em Direito em 1995 e sempre atuou na advocacia privada.
A relação dos irmãos com casos de falências e recuperações judiciais, um ramo do direito que tem crescido a reboque da crise econômica vivida pelo país, estreitou-se nos últimos anos. Em 2020, Marcello assumiu a 1ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem, que julga processos falimentares e afins. Dois anos depois, Fernando abriu sua empresa de administração judicial, a Wynn.
Em maio deste ano, como revelou o Metrópoles, Marcello indicou a esposa de um juiz do Rio de Janeiro para ser administradora judicial de uma empresa cujas dívidas chegam a R$ 13 milhões. Um mês depois, esse magistrado do Rio nomeou seu irmão Fernando Perino como administrador judicial de uma empresa endividada em R$ 32 milhões.
A Corregedoria do TJSP pediu explicações a Marcello. Ele contratou um advogado criminalista para oferecer defesa prévia, mas não deu certo. O órgão abriu uma investigação formal sobre a conduta do juiz.
Atuação fora dos autos
Além da atuação formal, há relatos de que a dupla Fernando Perino e Fábio Garcia atue fora dos autos em pelo menos um processo que está no gabinete de Marcello. Trata-se da uma briga societária travada entre os irmãos donos da Nilpel, uma fábrica de papel e gráfica fundada no fim dos anos 1980.
Os filhos e herdeiros da empresa, Rogério e Norberto Tirelli, travam uma disputa em torno da dissolução da sociedade, que tem faturamento anual de R$ 240 milhões e 380 funcionários. Viraram inimigos figadais e trocam todo tipo de acusações, como fraudes dentro da empresa.
O caso estava no gabinete de Marcello. O juiz nomeou um interventor na empresa, como é comum em brigas como essa. Documentos foram anexados ao processo com a assinatura digital de um advogado que trabalha no escritório de Fábio Garcia.
Em julho de 2022, Rogério registrou um tabelião de notas de Santo André um episódio envolvendo o irmão do juiz e Garcia. No documento, ele afirma ter ouvido de seus advogados que “antes de aceitar entrar na causa, gostariam de conversar com uma pessoa muito conhecida no meio empresarial”. Era Fábio Garcia, homem de confiança do juiz, que não tem qualquer relação com o processo da família.
Segundo Rogério, “na reunião de seus advogados com Fábio Garcia também compareceu Fernando do Amaral Perino”, o irmão do juiz. Ele afirma que foi dito no encontro que o processo da Nilpel era “de posse e manobras” de Garcia, e que ele era o articulador das “decisões tomadas” pelo interventor da empresa, Vicente Críscio, nomeado por Marcello.
Rogério afirma que o irmão do juiz “foi à reunião para mostrar a força que eles têm” e que Fernando e Garcia ainda disseram que “representavam o juiz”. Segundo o relato do empresário na escritura pública, a dupla teria dito na reunião que ele e sua a irmã seriam “expulsos em poucos dias” da empresa e que ele “nada poderia fazer para impedir”. Por isso, escreveu, decidiu registrar a ata em cartório para se “proteger”.
O relato é corroborado por uma peça discreta no processo, na qual um advogado do escritório de Fábio Garcia assina digitalmente uma petição do interventor nomeado pelo juiz. Rogério não foi afastado da empresa, mas sua irmã e aliada na causa foi, meses depois. Neste ano, a defesa de Rogério mencionou que um acordo com um credor havia sido elaborado por um escritório em Sorocaba, mesma cidade da banca de Fábio Garcia.
A peça não fazia qualquer acusação, mas após a simples menção do nome do advogado Marcello destituiu o interventor supostamente ligado a Garcia. O juiz escolheu uma nova administradora, que desagradou a Norberto, irmão de Rogério. Ele a acusou de ser ligada à defesa de Rogério e moveu pedidos de suspeição contra ela e o juiz.
“Os réus estão ameaçando denunciar a proximidade do Excelentíssimo Senhor Doutor Marcello do Amaral Perino com o citado Dr. Fabio Garcia. Seria mais um escândalo sobre nomeações cruzadas ou, no mínimo, de nomeação obscura e com troca de favores entre o magistrado e o Dr. Fabio Garcia?”, indagou Norberto no pedido de suspeição.
Marcello negou conduta imprópria, mas, após três anos na condução do processo, declarou-se suspeito por questão de “foro íntimo”. O caso agora está com outra juíza de São Paulo. Uma outra outra pessoa diretamente envolvida no processo da Nilpel relatou ao Metrópoles, sob condição de anonimato por temer retaliações, ter sido abordada por Fabio Garcia ao lado de Fernando Perino para tratar do caso.
Ela exibiu à reportagem datas, locais de reuniões e conversas que teve com Garcia, Fernando e Marcello sobre o processo, que envolvem agentes nomeados pelo juiz e o desfecho da briga societária.
O que dizem os envolvidos
Questionado pelo Metrópoles sobre os fatos, Fernando Perino afirma que as perguntas feitas pela reportagem estão “fundadas em ilações, inverdades e nenhum elemento de prova” e não deu nenhuma resposta. “Estou adotando as medidas judiciais cabíveis, para que o Sr. responda pelo constrangimento ilegal e ameaça a que vem me submetendo”, escreveu. Não houve nenhum tipo de ameaça por parte da reportagem.
À época em que o Metrópoles questionou Marcello Perino sobre as nomeações cruzadas nas recuperações judiciais, ele afirmou que seus atos não têm qualquer relação com a nomeação de seu irmão no Rio de Janeiro e que nomeia agentes do país inteiro, com ampla especialização na área empresarial. Questionado pela reportagem sobre os novos fatos, ele afirmou, por meio da assessoria do TJSP, que não vai se manifestar.
O advogado Fábio Garcia diz que tem contato apenas institucional com Marcello e Fernando, e não de amizade. Ele listou ainda pelo menos dois casos grandes para os quais foi nomeado para atuar em varas do interior desde 2012. “Ambas também com muito sucesso e com plano aprovado pelos credores e sem nenhuma restrição dos juízes ou promotores que atuam no caso”, diz.
“Minha atuação nunca teve questionamento do Ministério Público, de Credores ou do Tribunal sobre a minha competência ou meus relatórios. Nos casos de recuperação judicial que atuo, os planos de pagamentos dos credores foram aprovados com êxito, assim como a condução do processo. Nas falências, temos sucesso na venda de ativos para pagamento dos credores com parecer favorável do Ministério Público”, afirma.
Ele diz que Fernando Perino atuou ao seu lado apenas “na entrega dos memorias e sustentação oral no Tribunal”, em apenas um caso, “de forma exclusivamente pontual”. “A contratação foi por conta do sucesso dele em casos anteriores sobre o mesmo tema”, diz.
Sobre o caso da Mont Fort, ele ressalta que foi o seu “relatório que determinou a quebra do sigilo e averiguação de eventual fraude cometida pela empresa” e que aguarda informações bancárias e fiscais para conclusão do laudo.
No caso do leilão da fábrica da Pan, ele afirma que há pacífico entendimento no judiciário para privilegiar o valor à vista somente em lances idênticos, e que o lance de R$ 70 milhões parcelados ainda é mais vantajoso e que “valores incidem correção monetária definida pelo próprio tribunal”. Por fim, disse que se houver litígio em torno da fábrica, ele será resolvido pelo TJSP.
Sobre a acusação na máfia da merenda, Garcia afirmou que o TJSP tem acesso às suas certidões criminais e que é inocente no caso. Ele afirma que foi denunciado porque não expôs seus clientes aos investigadores cumprindo deveres de advogado. O advogado reforça que o processo é sobre fatos antigos e que o próprio MPF pediu à Justiça que reconheça sua prescrição.
Procurados, Vicente Críscio, Norberto Tirelli e Rogério Tirelli não se manifestaram.