De tiroteio a indigente: relatos de PMs sobre mortes no litoral têm inconsistências
Metrópoles analisou 13 registros nos quais PMs “atualizam” tiroteio, alegam ameaça com suspeito fulizado no chão e até chuva que não existiu
atualizado
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São Paulo — Sob alegação de que reagiram a disparos ou a ações suspeitas de bandidos, policiais militares mataram ao menos 16 pessoas na Operação Escudo, deflagrada no litoral paulista após o assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, de 30 anos, da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), no dia 27, no Guarujá.
O Metrópoles teve acesso a 13 boletins de ocorrência das mortes por intervenção policial na Baixada Santista — nove no Guarujá e quatro em Santos. Muitos deles apresentam inconsistências nos relatos feitos pelos PMs à Polícia Civil de São Paulo.
Há casos em que dois policiais contam versões diferentes sobre a mesma ocorrência ou ainda de suspeitos que foram baleados porque tentaram reagir mesmo quando já estavam caídos no chão após terem tomado tiros de fuzil.
Supostos tiroteios trocados a 2,5 metros de distância, ou com um homem que deixou o filho de 10 meses e correu para um beco para enfrentar a polícia, e uma troca de tiros com um homem identificado como indigente que portava um revólver calibre 38, engrossam a lista de incongruências.
Morto atrás da árvore
Segundo um dos registros, no dia seguinte ao assassinato do soldado da Rota, um homem não identificado que estava com “diversos indivíduos” no Guarujá, caminhou em direção à viatura policial com um objeto na mão e se abrigou “atrás de uma árvore”. Quando os policiais iluminaram o local, “foi possível visualizar que o indivíduo estava na posse de uma arma de fogo”.
Os policiais efetuaram disparos de fuzil. Ferido no peito e pernas, ainda segundo o relato feito pelos próprios PMs, o suspeito teria sobrevivido até a chegada do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que o levou ao Hospital São João, onde teria morrido. No BO não é mencionado quantos projéteis foram apreendidos, inclusive dos supostos tiros dados pelo suspeito, como é praxe nos registros.
Nove tiros antes de ser socorrido
Ainda na sexta-feira (28/7), por volta das 22h50, policiais afirmaram que faziam patrulhamento na Vila Baiana, no Guarujá, quando um suspeito entrou em uma residência assim que avistou os PMs.
Um sargento e um soldado afirmaram em depoimento que, quando se aproximaram da garagem da casa, o suposto criminoso os aguardava, apontando uma pistola calibre 380 na direção deles. O suspeito teria atirado três vezes. O sargento revidou com seis disparos de pistola e o soldado com mais três.
Mesmo ferido com nove tiros, o suspeito teria sobrevivido até a chegada do Samu, que o levou para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Enseada, onde morreu. A Polícia Civil foi acionada, mas, segundo o registro, a perícia no local foi prejudicada “por forte chuva” e pela “população ali existente.”
O Metrópoles checou que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não registrou chuva na região no dia mencionado pelos PMs. Nenhuma das pessoas supostamente presentes, que teriam prejudicado a perícia, foi ouvida como testemunha do caso.
Revólver x fuzis
Em outra ocorrência, um sargento disse à Polícia Civil ter visto dois suspeitos atrás de um muro e que um deles apontou um revólver em direção aos PMs de sua guarnição, “colocando em risco a integridade dos policiais”. Isso teria ocorrido na noite de sábado (29/7), no Guarujá.
Segundo o registro, dois sargentos deram três tiros de fuzil e um cabo efetuou mais um disparo de pistola. Os policiais afirmaram que ao lado do corpo caído no chão havia um revólver calibre 38 e uma mochila com drogas. Um outro suspeito teria fugido.
As armas usadas pelos policiais na ação permaneceram com eles, “mediante a responsabilidade de serem entregues no Instituto de Criminalística” da capital paulista — normalmente elas são apreendidas para a investigação.
Tiroteio “atualizado”
Por volta das 20h do sábado (29/7), no Guarujá, um PM relatou que fazia patrulhamento com mais dois policiais, todos armados com fuzis, quando avistaram três suspeitos, dois armados com pistolas e outro carregando uma mochila.
Ao avistar a guarnição, um dos suspeitos teria apontado a pistola em direção aos PMs. Não há menção a tiros efetuados pelo rapaz. No relato, um dos PMs afirma ter dado cinco tiros de fuzil e outro, três. Mesmo fuzilado, o suspeito conseguiu correr, segundo os PMs, enquanto comparsas dele fugiram em outra direção.
Ainda de acordo com o relato policial, o suspeito segurava a pistola “de forma ameaçadora”. Por isso, o PM “necessitou realizar novos disparos”, não detalhados. Somente após os tiros, “a situação foi apaziguada”.
Cerca de cinco horas após a ocorrência, o boletim foi atualizado com a informação de que houve troca de tiros, já na madrugada do domingo (30/7).
“Serve para retificar o histórico do boletim de ocorrência, o qual divergiu dos depoimentos dos policiais militares, os quais declararam que o suspeito realizou disparos contra a equipe e no histórico [original] essa informação está ausente”, diz o adendo.
Saiu de casa e correu para beco
Também na noite de sábado (29/7), um tenente da PM que fazia patrulhamento pelo bairro Sítio Conceiçãozinha, na periferia do Guarujá, relatou que Cleiton Barbosa Moura, de 24 anos, estava “dentro de uma casa” e “foi para o fundo de um beco” assim que avistou os policiais.
Os PMs envolvidos na ação ressaltaram que ouviram o choro de uma criança, enquanto correram em direção ao local para onde o suspeito teria fugido.
No beco, Cleiton teria usado uma pistola para supostamente atirar contra os policiais. O tenente revidou com um tiro de fuzil e o cabo com dois de pistola. As armas dos policiais também permaneceram com eles, até serem enviadas para perícia.
A versão deles é questionada pela esposa de Cleiton, como mostrou o Metrópoles. Uma vizinha registrou, em áudio, parte dos tiros que mataram o rapaz (ouça abaixo).
Segundo testemunhas, que não foram ouvidas pela Polícia Civil até o momento, Cleiton teria sido tirado a força de casa, onde cuidava do filho de 10 meses, e executado no beco onde teria ocorrido o suposto tiroteio.
Tiroteio com duas versões
Em outra abordagem que resultou em morte, um sargento relatou em depoimento que um suspeito “surgiu” na porta de uma residência, com uma arma em mãos. O policial disse que estava a 2,5 metros de distância do suposto criminoso e atirou duas vezes com seu fuzil. Um cabo afirmou ter atirado quatro vezes com sua pistola contra o mesmo alvo.
Segundo o sargento, mesmo ferido, o suspeito ainda teria tentado pegar uma arma e, por isso, o PM atirou com seu fuzil mais uma vez, com o homem caído no chão. Já na versão do cabo e de um soldado, o suspeito teria sido desarmado ao cair no chão.