Da favela para a Casacor, casa de 7,30 m² em Paraisópolis vira modelo
Como uma moradia aos pedaços na comunidade de Paraisópolis tornou-se o primeiro projeto de moradia na favela exposto na Casacor
atualizado
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São Paulo – Frio. Baratas. Vazamentos. Cheiro de mofo. “Banheiro? Era um sanitário ao lado da geladeira. Imagina aí”, descreveu Wallece Souza, 33, sobre sua casa de 7,30 m² no Jardim Colombo, em Paraisópolis, comunidade da zona sul de São Paulo. Em menos de um mês, o espaço foi transformado numa referência e tornou-se o primeiro projeto de moradia na favela exposto na Casacor, um dos principais eventos de arquitetura do mundo.
Foi numa pausa rápida, entre uma e outra entrega, que o paulistano conversou com o Metrópoles sobre sua nova casa. “Você viu o antes e o depois?”, perguntou entregador de aplicativo que trabalha 12 horas por dia. O local não tinha nem chuveiro. “Eu chegava e tinha que tomar banho no vizinho. Às vezes era tão tarde que nem tomava e você sabe, né, que tomar um banho depois do trabalho é importante para acordar disposto para as entregas no outro dia”, disse.
Não era só chuveiro que faltava. A casa de Wallece não tinha nenhum tipo de estrutura. “Eu tapava os buracos com lençol porque entrava um vento muito frio. E para não entrar nenhum inseto ou bicho desses que matam”, disse.
São mais de dez horas pedalando por dia. Com as entregas, conseguiu juntar R$ 9 mil e comprar um barraco de 7 m².
O projeto é da arquiteta e ativista Ester Carro, cujo trabalho é focado em mostrar as possibilidades que a arquitetura pode levar para a periferia. Ester não caiu de paraquedas em histórias alheias. A história do entregador também faz parte da sua trajetória.
Foi em meados de 2008, na Escola Estadual Pedro Fonseca, que Ester e Wallace conheceram-se no ensino médio. “O acesso à escola pública era, e ainda é, muito difícil. Quando chovia era um caos chegar até lá porque não tem escola pública dentro da comunidade”, disse Ester. O “lá” é Jardim Colombo. Ester completou o ensino médio e formou-se em arquitetura. O colega de infância não conseguiu terminar os estudos. “Eu não tive escolha. Ou estudava ou trabalhava”, disse o entregador.
Eles reencontraram-se em 2023, quando Ester reformou a casa do Seu Tiquinho. Uma residência de apenas 4 m², sem banheiro e sem cozinha, que a arquiteta transformou recolhendo doações, aplicando seu conhecimento e capacitando moradores através do projeto Fazendinhando.
A transformação começou no dia 10 de junho e foi concluída no dia 6 de julho. Como o local precisa ficar exposto enquanto durar o evento, Wallece está morando de favor na casa de amigos da comunidade.
O que mudou
“Ele passou na mesma rua e perguntou se poderíamos ajudar”, lembra Ester. “Ele conseguiu comprar aquele pedacinho com muito suor, trabalhando como motoboy numa bicicleta”. A arquiteta correu atrás e ofereceu o projeto para a Casacor, que topou. Daí vieram as empresas com as doações.
“A casa dele não tem pilares. muita gente perguntou como seria possível colocar uma estrutura ali sem um custo extremamente alto e sem interferir em outras moradias. Tudo foi feito na medida do possível. Nas laterais não tinha para onde expandir. Daí criei o mezanino para aproveitar melhor o espaço. Ali ele consegue dormir. E, na parte de baixo, tem a cozinha, a lavanderia, o banheiro, o guarda roupa, o armário. Incluímos novas esquadrilhas para entrada de ventilação. Pensando em atender todas as necessidades básicas num espaço minúsculo”.
A solução foi verticalizar. Ester pensou num mezanino na área superior, onde agora fica o dormitório. Abaixo, armários e uma bancada que funciona como cozinha. Ao lado, um tanque. O espaço, agora totaliza 10,50 m². Torneiras, marcenaria, saboneteira, piso, colchão, tintas. Tudo foi resultado de doações de empresas agilizadas pelo projeto de Ester, o Fazendinhando. “O Wallece é um exemplo de jovem que está na batalha todo dia, que nunca desistiu. Que não foi para o crime”, disse ao Metrópoles.
Outra casa transformada em Jardim Colombo pelo projeto de Ester foi a casa da Neuza. Uma casa cheia de ratos, sem nenhuma condição de moradia. “Não existe política pública para a periferia que ofereça suporte nesse aspecto”, lamenta.
Tudo em casa
Wallece está feliz e motivado. “É como se minha vida estivesse começando. Sempre tem alguém para criticar, mas eu sei quem ela é e de onde veio. Eu agora quero voltar a estudar”, afirmou ao Metrópoles. “Quem sabe arquitetura ou engenharia civil”, concluiu.
Ela está certa de que pode fazer mais e segue firme com seu objetivo de lutar por dignidade para a população periférica. “Nunca imaginei que ele vivia naquela situação. Nunca imaginei, na época que estudava, que algo assim aconteceria. Hoje, através da minha profissão, consigo devolver para minha comunidade”.
Mais que um objetivo, um sonho de quem não esqueceu suas origens. “Quero ter um reality show, um programa na televisão, sobre arquitetura em moradias periféricas porque toda vez que falo desses projetos possíveis dentro de dimensões como essa, ninguém acredita que é possível”.
Wallece voltará para a casa nova somente na próxima semana. E dormirá sem medo de inseto, numa cama cercada por uma parede estilizada com um grafite criado pelo artista Júlio Jesus, morador do Jardim Colombo e fundador do Studio Desenrole.