Chef caiçara comanda produção de marmita para vítimas no litoral de SP
Natural de São Sebastião, o chef Eudes Assis reúne voluntários, faz 10 mil marmitas ao dia e arrecada R$ 1,1 milhão para vítimas da tragédia
atualizado
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“Não está fácil, a ficha vai caindo. A situação não amenizou. Quem está na linha de frente, como o pessoal da Defesa Civil, e segue retirando os corpos soterrados, está bem abalado emocionalmente”.
O relato, feito ao Metrópoles na quinta-feira (23/2), é do chef Eudes Assis, proprietário do Taioba Gastronomia, restaurante no sertão de Cambury, praia do litoral norte de São Paulo, onde ele serve receitas autorais inspiradas na gastronomia caiçara.
O estabelecimento fica na região que foi castigada pelas fortes chuvas durante o Carnaval, que já resultaram na morte de mais de 50 pessoas e deixaram mais de 4 mil sem moradia.
Mesmo diante do cenário de desolação e do prejuízo decorrente da invasão da lama em seu estabelecimento, o cozinheiro nascido em São Sebastião segue seu trabalho na cozinha, liderando 200 pessoas no preparo de marmitas e na montagem de cestas básicas para doar às vítimas da tragédia no litoral paulista.
A seguir, Eudes relembra o dia-a-dia desta jornada que, segundo ele, não tem prazo para terminar.
Domingo (19/2): 1º dia
Na manhã de domingo (19/2), visivelmente assustado com o “cenário de guerra”, como ele próprio definiu, Eudes Assis anunciou pelas redes sociais que fecharia o restaurante Taioba por três dias, para preparar marmitas para os desabrigados, desalojados e profissionais da Defesa Civil envolvidos no socorro às vítimas do temporal que assolou os bairros da costa sul de São Sebastião naquela madrugada, em especial Barra do Sahy, Praia Preta, Cambury e arredores.
Ao chegar no Taioba, que fica na entrada do Sertão de Cambury, a 300 metros do acesso para a rodovia Rio-Santos, Eudes Assis notou que a lama havia invadido o estabelecimento, que estava sem abastecimento de água e sem luz. Seria, portanto, impossível preparar as marmitas ali. O chef, então, teve a ideia de ir até Boiçucanga, distante 3 quilômetros, para preparar as refeições na cozinha industrial que fica na sede do Projeto Buscapé, ONG da qual é vice-presidente e que ampara menores em situação de vulnerabilidade.
Mas três desmoronamentos bloqueavam completamente o sinuoso trajeto entre Cambury e Boiçucanga, com aclives e declives na rodovia Rio-Santos. Sem poder se deslocar de carro e com a ajuda do filho mais velho, Eudes não desanimou e organizou uma vaquinha virtual que até o momento já arrecadou mais de R$ 1,1 milhão.
Segunda-feira (20/2): 2º dia
“Consegui chegar ao Projeto Buscapé com muita dificuldade, de bicicleta, com lama por todo o trajeto e a sensação de que o morro iria cair em cima de mim. Mas minha vontade de ajudar é muito maior do que qualquer medo e o risco que eu estava correndo”, relembra o chef, que voltou às redes sociais e convocou apenas os voluntários que estivessem em Boiçucanga para doar insumos e ajudar no preparo das marmitas.
Era impossível contar com o apoio de quem estivesse em Cambury e Maresias, os bairros vizinhos respectivamente ao sul e ao norte, porque essas pessoas se colocariam em situação de risco caso tentassem ir até lá. “Nesse primeiro dia, as pessoas começaram a chegar com pacote de arroz, pedaço de carne e outros itens. Chamei uns amigos motoboys, porque só era possível se locomover de moto na região. A gente conseguiu fazer e entregar 800 marmitas”.
Terça-feira (21/2): 3º dia
No segundo dia de trabalho na cozinha do Projeto Buscapé, as primeiras doações de insumos começaram a chegar. Além de comida, os itens de cesta básica e água desembarcavam na cozinha de Eudes, vindos de barco e de helicóptero.
“De um dia para o outro conseguimos aumentar a produção para 8.000 marmitas”, diz o chef. “O clima no Projeto Buscapé é bom, as pessoas estão engajadas em fazer o bem e a comida está uma delícia: cheia de propriedades nutritivas, com proteína, vegetais, arroz e feijão”.
Quarta-feira (22/2): 4º dia
No terceiro dia de trabalho — o quarto depois da tragédia –, quando mais doações chegaram, a equipe reunida por Eudes bateu a meta de 10.000 marmitas produzidas em um dia. “Com os mais de 200 voluntários, a gente até teve que escalonar o trabalho em turnos porque a sede do projeto não é tão grande. Organizamos grupos de 20 pessoas”, diz ele.
“Tem gente na sala de balé montando cesta básica, outros separando roupas, calçados e roupa de cama recebidos; há uma pessoa coordenando a entrega das garrafas e galões de água que chegam e assim por diante. A cozinha do Buscapé está bombando, nunca fez tanta comida”.
Quinta-feira (23/2): 5º dia
“É difícil. Nunca, em meus 49 anos, pensei em passar o que estou passando. Na frente das pessoas eu estou forte, liderando essa turma toda, não posso me deixar abater. Mas hoje eu acordei com a imunidade baixa, tomei uma vitamina C, um suplemento alimentar e segui firme”, conta o chef.
Segundo ele, não faltam insumos para a produção das marmitas. Uma das dificuldades no momento é armazenar as doações de forma correta para que nada se perca. “Mas estamos em cenário de guerra e desta vez a caixa de tomate vai estar no chão, não tem o que fazer. A gente é grato por ter essa caixa de tomate. Então, hoje, minha maior dificuldade é organizar tudo. A cozinha não para, são 15 horas por dia cozinhando direto e embalando marmitas”.
Eudes Assis diz que não tem previsão de quando irá finalizar essa força-tarefa. “Vai demorar muito para a vida voltar ao normal. É muito triste. Eu sou grato pelo Taioba, que emprega 18 pessoas de carteira assinada, e vou garantir o salário de todos”, diz. “Mas não vou reabrir o restaurante. Eu não consigo faturar, ganhar dinheiro, atender com hospitalidade e sorriso, no momento em que nós estamos”.