“Abusivo e arbitrário”: roteiristas denunciam plataformas de streaming
Roteiristas denunciam streamings por má remuneração, contratos abusivos e desrespeito à propriedade intelectual. MPT investiga reclamações
atualizado
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São Paulo — Amazon, Disney, Globoplay, HBO, Netflix e Paramount são as seis plataformas de streaming investigadas pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) após denúncias de más condições de trabalho dos roteiristas. Os profissionais denunciam contratos abusivos e desrespeito à propriedade intelectual, além de má remuneração e demissões arbitrárias.
Um levantamento inédito da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra) revela que quatro em 10 roteiristas não obtiveram renda com roteiro ou receberam pouco mais de um salário mínimo por mês ao longo de 2024. De acordo com a entidade, a situação é ainda mais grave entre profissionais fora do eixo Rio-São Paulo e não cis.
Ainda segundo o estudo, menos de um terço dos roteiristas que participaram da pesquisa vivem apenas de roteiros no Brasil. A maioria dos profissionais atua em outras funções, principalmente no audiovisual, por necessidade ou obrigação.
Denúncias
O inquérito civil, conduzido pelo procurador Cassio Luis Casagrande, foi publicado no dia 24 de setembro. A medida ocorre cerca de dois anos depois de a Abra pedir a mediação da Procuradoria nas relações contratuais dos roteiristas com seus contratantes, diante de reiteradas reclamações dos associados sobre cláusulas e condições abusivas em contratos.
A associação cita alguns exemplos das cláusulas e condições consideradas abusivas:
- Impossibilidade de negociar cláusulas importantes dos contratos, que são modelos padronizados das plataformas de streaming;
- Cláusulas que exigem exclusividade do trabalho do roteirista para a plataforma sem a remuneração adequada para que o profissional deixe de trabalhar para outros “players”;
- Não ter garantia de receber os créditos adequados de autor das séries e filmes escritos para os streamings;
- Obrigação de escrever novas temporadas de séries pelo mesmo valor da temporada inicial, ou apenas com um pequeno acréscimo nos valores dos cachês;
- Cláusulas que determinam aos roteiristas multas altíssimas pela rescisão dos contratos;
- Pagamento da remuneração em datas incertas;
- Proibição de que roteiristas busquem a Justiça brasileira comum em caso de descumprimento de cláusulas dos contratos, com alguns contratos prevendo o procedimento de arbitragem;
- Proibição ou limitação de que roteiristas, no futuro, além do cachê pela escrita dos roteiros, recebam pelas múltiplas exibições de suas obras nas plataformas, por meio de sociedades de gestão coletiva de direitos.
Entre as denúncias, também está a possibilidade de término sem justa causa do contrato a qualquer momento pelas plataformas, sem pagamento por aviso prévio.
Em alguns casos, segundo a associação, a situação se agrava. Isso porque também ocorrem casos em que o roteirista foi o responsável por criar a série ou filme, e, mesmo assim, o profissional é retirado do processo sem a devida compensação.
O que diz a Abra
A advogada da Associação Brasileira de Roteiristas Autores, Paula Vergueiro, explica que as plataformas estrangeiras contratam as produtoras brasileiras como prestadoras de serviço. São essas produtoras, por sua vez, que contratam os roteiristas.
Segundo a advogada, esse é um método adotado pelas plataformas de streaming para se abster de responsabilidades contratuais. As produtoras, contudo, assumem a mesma postura.
“As produtoras falam ‘olha, não tenho nada a ver com isso, porque quem manda fazer esse tipo de contratação são as plataformas’. As plataformas, por sua vez, dizem ‘olha, resolvam-se aí porque a produtora é a contratante’”, disse Paula ao Metrópoles.
Isso limitou a negociação feita pela associação. Por isso, a Abra procurou a Justiça.
Conforme a advogada, há também um inquérito movido pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP), mas que se resumiu a intimar as plataformas de streaming estrangeiras, não ouvindo as contratantes brasileiras.
O presidente da Abra, André Mielnik, disse ao Metrópoles que o MPSP entendeu que existe uma relação assimétrica de contratação. “São contratos basicamente de adesão, eles não são negociáveis em vários aspectos”, afirma.
Mielnik destaca que o trabalho do roteirista é “muito mal precificado”. “O roteirista, além de ter essa característica de ser o elo inicial do ecossistema do audiovisual, ele também tem essa força de construção de propriedade intelectual dentro do audiovisual, mas o preço que se paga por isso ainda é muito mal precificado”, denuncia.
Segundo o presidente da associação, esse é um sintoma de uma indústria que ainda está entendendo o seu tamanho. “Então, essa luta acaba sendo também uma luta para [entender a] importância do autor roteirista dentro desse ecossistema, além do potencial de criação dessa propriedade intelectual, é também de valorização dessa propriedade intelectual dentro do audiovisual brasileiro”, destacou.
Relatos
O Metrópoles ouviu dois roteiristas que não serão identificados neste texto. A decisão se deu para preservar a segurança dos profissionais e evitar represálias em futuras contratações.
Um dos profissionais apontou uma cláusula de “pagamento sob aprovação”, o que, segundo ele, nunca dá certo. “Aprovação é um critério extremamente subjetivo num roteiro. E se não está aprovado, você não recebe”, disse. Com isso, ele também não pode se programar financeiramente.
Em outra ocasião, mesmo virando a noite trabalhando, o profissional foi demitido sem motivo aparente. A justificativa seria “dar uma chacoalhada” na equipe. “Você tem toda uma vida, tá tudo estruturado, virando noite… e aí querem dar uma chacoalhada”, afirmou.
Ele salienta que as produtoras brasileiras também têm responsabilidade sobre os abusos. Afinal, são elas as responsáveis pelos contratos. “Não são só os streamings não. As produtoras participam dessas práticas de trabalho abusivas”.
Para o roteirista, as produtoras colocam condições trabalhistas “impossíveis”.
“É complicado porque eles trazem leis americanas, misturam realidades americanas com realidades brasileiras, e a gente não tem muito poder de negociação quando assina o contrato”, denunciou.
Quando virou pai, o profissional pediu licença paternidade de um mês não remunerada à produtora que o havia contratado. Após receber uma negativa da produtora, ele pediu o período de cinco dias – ainda sem remuneração. Como resposta, o profissional foi retirado do projeto.
Outro roteirista também revelou problemas com relação à licença paternidade. Ele estava escrevendo para uma série e, no momento da contratação, a produtora já sabia que o profissional seria pai. Por isso, foi acordado o período de duas semanas de recesso após o nascimento da filha. No entanto, nenhum dia foi dado.
“Eu estava no hospital escrevendo o roteiro. Entreguei o roteiro no prazo que eles queriam e aí depois eles me demitiram e falaram que eu estava sem cabeça para escrever, assim que ela nasceu”, contou ao Metrópoles.
Segundo o autor, a lógica de trabalho faz os profissionais saberem que, se quiserem sair do emprego, não podem. Mas, ao mesmo tempo, eles podem ser substituídos a qualquer momento.
Assim como o primeiro roteirista, ele também passou por um contrato que considera abusivo com uma produtora brasileira. O profissional desenvolveu um projeto inteiro, do começo ao fim, e a produtora colocou uma cláusula segundo a qual se reservava ao direito de colocar qualquer profissional como cocriador.
“Isso é uma coisa que está ali para ferir diretamente os direitos autorais. Uma coisa é o projeto ganhar ideias e amadurecer, outra coisa é a criação do projeto, é um outro tipo de trabalho”, destacou.
Atualmente, ele está em um bom trabalho, mas sabe que isso não deve durar muito tempo. “Um projeto agora que foi ótimo, inclusive, super respeitoso, o que é uma raridade. Mas é isso, acaba semana que vem e aí estou de novo chutando para todo lado para tentar achar uma nova coisa”, afirmou.
Greve dos roteiristas nos EUA
Em 2023, roteiristas de Hollywood se uniram em uma greve que durou 148 dias. O sindicato da categoria (WGA, na sigla em inglês) aprovou, depois de votação, um acordo fechado com os representantes dos estúdios, o que pôs fim à paralisação. O movimento impactou de maneira significativa o mercado audiovisual.
Para Paula Vergueiro, advogada da Abra, o episódio mostra que os roteiristas do país norte-americano têm uma forte proteção laboral. “Lá nos Estados Unidos eles de fato tinham como se proteger, e aí fizeram a greve, porque eles têm sindicato atuante”, afirmou.
No Brasil, no entanto, a realidade é outra. “A gente não pode fazer uma greve, a Abra não é um sindicato, mas de certa forma, eu diria que a raiz do problema é a mesma, só que sem os mesmos instrumentos, porque lá eles podem parar a indústria, e aqui a gente de fato ainda não tem esse poder”, analisa a advogada.
André Mielnik, presidente da Abra, reforça que, de fato, a associação não está fazendo a mesma coisa [greve], “mas a gente está utilizando um instrumento de pressão para negociar”, destacou.
Outro lado
O Metrópoles contatou a Motion Pictures, guarda-chuva que responde pelas plataformas de streaming internacionais, a Bravi, que reúne as produtoras brasileiras citadas no inquérito civil do MPT-RJ, e o Grupo Globo, responsável pelo Globoplay. No entanto, não tivemos nenhum retorno até a publicação desta reportagem.