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A luta pela preservação da memória negra nos bairros de São Paulo

Grupos de pesquisadores e ativistas negros resgatam histórias da população negra na cidade e defendem conscientização sobre o tema

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Jessica Bernardo / Metrópoles
imagem colorida mostra celebração na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha
1 de 1 imagem colorida mostra celebração na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha - Foto: Jessica Bernardo / Metrópoles

São Paulo – Quem caminha entre os prédios comerciais da Rua da Quitanda, no Centro Histórico de São Paulo, provavelmente não sabe, mas o endereço carrega parte importante da história da população negra da maior cidade do país.

O nome da rua ajuda a explicar. No século XIX, o lugar, até então chamado de Rua do Cotovelo pelo desenho que formava no mapa do centro, passou a ser apelidado de Rua da Quitanda pela presença constante de quitandeiras negras que vendiam alimentos ali.

Além de saciar a fome de quem passava pela cidade, aquelas mulheres exerciam um papel de resistência em meio à escravidão do país, como explica a antropóloga Raíssa Albano.

“Elas passavam recados de fuga, de livramento. E, muitas vezes, com seus ganhos, conseguiam negociar a liberdade de uma pessoa mais nova, de um filho, de um neto”.

Séculos depois, a cidade de São Paulo se tornou o município com maior número de pessoas pretas de todo o país. São 1,16 milhão de habitantes autodeclarados pretos, segundo o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Somados, os moradores pretos e pardos de São Paulo chegam a quase 5 milhões de pessoas, ou 43,5% da população da capital paulista.

A história sobre como essa população se constituiu na cidade guarda marcas em diferentes bairros, como a Sé, a Liberdade e o Bixiga, mas ainda é pouco contada.

Nos últimos anos, grupos de pesquisadores têm lutado para preservar as memórias negras dos bairros paulistanos e impedir que as histórias sejam silenciadas. Foi assim que, em 2017, Raíssa e dois amigos criaram o Coletivo Cartografia Negra.

“A gente começou a pensar o projeto com perguntas sobre a nossa família. A gente queria saber as histórias dos nossos antepassados e percebeu que essas dúvidas não eram só nossas, eram questões que estavam colocadas na comunidade. Onde estão as pessoas pretas? Como as pessoas pretas chegaram a São Paulo? O que elas fizeram nesta cidade e o que essa cidade fez com elas?”, conta Raíssa.

Junto com Carolina Piai Vieira e Pedro Vinicius Alves, Raíssa passou a pesquisar sobre o tema e organizar caminhadas pelo centro da capital paulista para repassar os conhecimentos adiante. Nos passeios, o grupo contava histórias como a de Maria Punga:

“Ela teve um dos primeiros cafés na cidade de São Paulo e era uma mulher negra. O café dela funcionou de 1850 a 1860”, conta Raíssa, explicando que estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco eram alguns dos clientes de Maria.

Outra história lembrada pelo coletivo é a do Chafariz da Misericórdia, construído pelo arquiteto negro Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, no Largo da Misericórdia, em 1792. O monumento era ponto de encontro para as pessoas negras que viviam na região e iam até ali para buscar água potável em meio aos problemas de abastecimento da cidade colonial.

Um desenho feito pelo pintor José Wasth Rodrigues retrata o movimento no chafariz na época. Na imagem, é possível ver duas mulheres negras conversando enquanto uma delas carrega um barril de água na cabeça.

imagem colorida mostra desenho do chafariz da misericórdia
Desenho de José Wasth Rodrigues sobre o Chafariz da Misericórdia, projetado por Tebas

O escritor e pesquisador Abílio Ferreira diz que o desenho ajuda a revelar a presença negra no coração da cidade.

“A história da população negra na cidade de São Paulo é explicada pelo centro”, afirma Abilio, explicando que houve uma tentativa de associar a região a referências europeias, mas que a presença negra sempre foi determinante no local.

Como Raíssa, Abílio é um dos nomes que lutam para que as histórias da população negra na cidade não sejam silenciadas. Ele lidera o Instituto Tebas, criado para atuar pela valorização do patrimônio cultural negro e indígena, e é um dos precursores do movimento para a preservação do Sítio Arqueológico dos Aflitos, na Liberdade.

Associada nas últimas décadas a um bairro asiático, a Liberdade tem um histórico ligado à escravidão. Ali, pessoas escravizadas foram vítimas de violência no Largo do Pelourinho e no Largo da Forca. E também ali essa população era sepultada, no Cemitério dos Aflitos.

“O Cemitério dos Aflitos era onde eram sepultadas as pessoas ‘indignas’”, conta o pesquisador, explicando que na época a população em geral era enterrada nas igrejas e o cemitério era o local onde pessoas mais pobres e escravizadas eram levadas.

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Área do sítio arqueológico dos aflitos, onde está sendo construído o Memorial
Capela dos Aflitos abrigava era onde acontecia o sepultamento das pessoas enterradas no primeiro cemitério de São Paulo
Altar da Capela dos Aflitos
Santuários da Capela dos Aflitos estão sendo restaurados
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Faixada da capela dos Aflitos, no bairro da Liberdade, centro de São Paulo

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Área do sítio arqueológico dos aflitos, onde está sendo construído o Memorial

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Capela dos Aflitos abrigava era onde acontecia o sepultamento das pessoas enterradas no primeiro cemitério de São Paulo

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Altar da Capela dos Aflitos

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Santuários da Capela dos Aflitos estão sendo restaurados

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Não se sabe ao certo quantos corpos foram enterrados ali. Após o fechamento do cemitério, em 1858, o centro da cidade passou por uma série de reformas urbanas e loteamentos sem que houvesse qualquer preocupação com os túmulos e covas. Agora, o grupo União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca) luta para preservar esta história.

Nesta segunda-feira (18/11), a prefeitura retirou luminárias japonesas que ficavam na rua que dá acesso à Capela dos Aflitos, vestígio dos tempos do cemitério, atendendo a uma reivindicação do movimento negro na região.

“É necessário respeitar a memória que este lugar carrega, os corpos que ainda estão enterrados aqui”, defende o historiador Wesley Vieira, um dos membros da Unamca.

Bixiga

Assim como a Liberdade, o Bixiga é outro bairro com histórico ligado à população negra e hoje mais conhecido por sua relação com os imigrantes italianos.

“O historiador Ernani Silva Bruno, autor do livro História e tradições da cidade de São Paulo, relata que havia fugas de negros pelas matas às margens do Saracura. É o Rio Saracura, que passa embaixo da Av. Nove de Julho”, conta Abilio.

Anos mais tarde, essa população criaria residência ali, mantendo o território hoje conhecido como Bixiga sob forte influência da cultura afro-brasileira. Achados arqueológicos recentes, durante o processo de escavação para a construção da Linha 6-Laranja do Metrô, endossam as informações sobre o passado da região.

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Achados arqueológicos na área da futura estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô
Achados arqueológicos na área da futura estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô
Achados arqueológicos na área da futura estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô
Achados arqueológicos na área da futura estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô
Achados arqueológicos na área da futura estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô
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Achados arqueológicos na área da futura estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô

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Achados arqueológicos na área da futura estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja do Metrô

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Hoje, o Movimento Saracura-Vai-Vai, formado por associações e moradores do bairro, defende que o lugar tenha sua história reconhecida e que o sítio arqueológico seja preservado. O Vai-Vai no nome do movimento também ressalta a importância do bairro para o samba paulistano.

A importância da Memória

Pesquisadores do tema da preservação da história negra, Fábio Dantas Rocha e Fernanda Fragoso Zanelli vêm com otimismo a expansão dos movimentos dedicados ao assunto nos últimos anos, inclusive com roteiros culturais.

Autores do Guia Itinerários da Experiência Negra, projeto que mapeou a presença negra em diferentes pontos da cidade em 2015, a dupla conta que o apagamento da história negra aconteceu também em bairros fora do centro da cidade e que é essencial ampliar essa discussão.

“Sé e Liberdade eram regiões de muita concentração negra, mas, ao mesmo tempo [eram também assim] bairros como Brás, Penha, Santana, Limão, que são normalmente descritos como bairros imigrantes”, afirma Fábio.

“São Paulo é uma cidade multiétnica. Não faz sentido nenhum a gente descrever determinados bairros por conta da característica de um grupo só porque esse grupo compõe esse bairro junto com umas centenas de outros grupos. A questão é: a gente identifica a Mooca e o Brás, por exemplo, como bairros estritamente imigrantes por conta de uma escolha da memória”, critica Fabio, que é especialista em História Urbana e do Pós-Abolição Brasileiro.

Durante a elaboração do Guia Itinerários da Experiência Negra, os dois convidaram um grupo de jovens do bairro em que Fernanda foi criada, Jardim João XXIII, na periferia na zona oeste da cidade, para conhecer a história de pontos históricos para a população negra no centro, como as redações de jornais da imprensa negra.

Para Fernanda, o trabalho na área de memória é imprescindível: “A memória coletiva, familiar, conecta sentido, contribui para o processo de formação de identidades. No contato com os jovens, na época do projeto, percebemos como mergulhar nessa história de São Paulo ressignificou o próprio sentimento de pertencimento à cidade”, conta.

Periferias e a continuidade da história

Agora espalhada por toda a cidade, movimento causado em parte pelos processos que envolveram a especulação imobiliária no centro e em parte pela rede de apoio que se formou em outros territórios, a população negra tem criado novas memórias nas periferias de São Paulo.

A chegada de nordestinos negros que construíram suas casas em bairros como São Miguel, na zona leste, e Paraisópolis, na zona sul, também ajudaram a escrever a história recente da população negra nas diferentes regiões de São Paulo, construindo novas memórias sobre a resistência e a cultura negra da cidade nas periferias. Memórias que agora incluirão o rap dos Racionais MCs, o sarau da Cooperifa e o movimento Quilombaque, em Perus, por exemplo.

Os entrevistados desta reportagem defendem que essas histórias sigam sendo contadas e têm planos para ajudar nessa garantia. O coletivo Cartografia Negra quer se transformar em um instituto, voltado à formação de outras pessoas sobre o tema. Já Fábio e Fernanda anunciaram que vão criar outro guia, desta vez voltado às histórias negras no ABC Paulista.

Abílio resume o movimento: para ele, é preciso olhar para o passado para lidar com o presente. “Você é a sua história”, diz o escritor.

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