Um corpo bonito é aquele que acolhe bem a sua alma
A regra da aparência vem sido ditada por uma minoria e os demais fazem um exercício frenético para caber em exigências tiranas
atualizado
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Temos o corpo como a primeira e, muitas vezes, a principal referência de sermos indivíduos. O ego, a estrutura que gerencia a consciência, apropria-se dele para definir-se e ganhar funcionalidade. “Meu braço”, “minha cabeça”, “minha pele”, dizemos, seja para gerar referências ou para refletirmos sobre nós mesmos. Essa apropriação é, inclusive, uma dos indicadores no desenvolvimento da personalidade: mostra que a criança já consegue distinguir-se no mundo que a envolve.
Daí, você se olha e, por alguma razão, percebe que o corpo que habita não parece certo. Tem mais gordura que o que vê como padrão. A pele não está representada nos comerciais de produtos com credibilidade. Não há uma liderança que adote a mesma estrutura dos seus cabelos. Não aparece o bíceps, e o abdômen, que não deveria aparecer, está marcado. O primeiro pensamento: o que sou não serve.
Poderia ter sido assim com Amanda Souza, por exemplo. Esta semana, ela publicou um texto tocante, intitulado “Mas você tem um rosto tão lindo.” Conviver com o sobrepeso desde a infância, e ouvir a infame frase, poderia ter sido venenoso para sua autoestima. Felizmente, não foi. Amanda compreendeu que sua estrutura corporal não era um erro. Era um traço de si. Amanda é bonita. Ou, como diz, também é bonita – não precisamos desqualificar o outro para valorizar o que somos.
Saúde além da gordura
É natural que a maioria dite a regra. No entanto, o que percebemos é que a regra da aparência vem sido ditada por uma minoria. E os demais fazem um exercício frenético para caber em exigências tiranas. E por que se prestar a algo tão sofrido e descabido? A explicação está em associações equivocadas.
O dito “corpo bonito” da atualidade está sempre associado a hábitos saudáveis. A saúde é o caminho para o bem-estar – com essa parte eu concordo. No entanto, nem sempre os meios adotados para alcançar tal corpo são, de fato, saudáveis. Ora por estressarem ao extremo a estrutura física, ora por impor um alto grau de sofrimento psíquico.
Coleciono uma série de transtornos alimentares na experiência clínica. E não pense nas óbvias bulimia e anorexia, tão estigmatizadas por corpos cadavéricos. Falo aqui de duas primas pouco famosas, apesar de extremamente populares no mundo contemporâneo: ortorexia e vigorexia, geradas por hábitos compulsivos.
O mal escondido no bom hábito
Você certamente conhece (ou é) aquela pessoa que vive em busca do “alimento do século”, o mais cheio de nutrientes, o mais funcional, a semente de não-sei-o-que combinada com o farelo-de-qualquer-coisa. E que muda seus hábitos alimentares a cada Globo Repórter. Quando essa necessidade de “comer corretamente” cruza os limites da razoabilidade, estamos diante da ortorexia.
Também não deve estar longe de si aquela pessoa que quer esculpir cada fibra muscular, a qualquer custo, para se adequar a um padrão estético muito pouco razoável. E que, em nome disso, afasta-se de qualquer outro interesse, e restringe de forma desproporcional os contatos sociais. Esse ser pode estar sofrendo de uma patologia psíquica, chamada vigorexia.
Num passado próximo, era um mal predominantemente masculino. Mas hoje tem ganhado espaço entre as mulheres, que querem ficar “saradas”, rasgadas”, “secas” e outros adjetivos. Às vezes, tais traços compulsivos se combinam. E daí vemos pessoas “saradas” abrindo marmitas frias e pálidas em pleno restaurante, contrariando o bom senso e os pratos de seus convivas, para não fugir da dieta numa comemoração qualquer.
Amanda me parece muito mais saudável que isso. E também mais feliz. Talvez por ter entendido que os valores maiores da existência vão além daquilo que é percebido, de forma superficial, pelos cinco sentidos. Talvez por saber que, numa batalha, o cavaleiro é mais importante que o cavalo.