Ser invisível pode ser privilégio ou castigo. Depende da perspectiva
Todos enxergam e reagem, a depender daquilo que carregam dentro de si
atualizado
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Um jogo de conveniências me faz invisível quando passo direto por uma batida policial, sem ser abordado. Ou quando entro em uma loja de produtos caros. Ou quando não sou questionado por minha competência profissional. Ou se, acompanhado por mulheres, tenho mais atenção do garçom. Tudo isso me constrange e envergonha.
Sou um homem socialmente privilegiado. A começar, por ser homem. Nunca passei fome, nem fiquei desabrigado. Se não fosse a miopia, estaria livre de qualquer limitação física ou fisiológica. Venho de uma família suficientemente estruturada, que pode me proporcionar uma boa educação e critérios éticos.
Trabalho desde meados da faculdade – por sinal, particular. Tenho imóvel próprio, as contas em dia. Não especificamente pela tez, mas talvez por esse somatório de fatores sou considerado “branco” ou “moreno claro”, quando questiono os demais sobre minha cor de minha pele.
Tudo isso constitui uma aparência de invisibilidade para uma série de questões dolorosas, que atingem milhões a cada dia. Muitas das quais não consigo nem mensurar, sequer imaginar. Meu exercício profissional me permitiu acessar parte desses males – confesso: algumas horas a contragosto. Por mais que tenha gerado empatia, ainda sou privilegiado, invisível.
E é justamente o avesso daquilo que citei que destaca muitos no meio da multidão. Expõe, vulnerabiliza. Negros, mulheres, deficientes físicos, analfabetos, indigentes. Esses ficam aparentes, incomodam e são preteridos.
Seu caráter pouco importa: eles simplesmente são julgados por aquilo que são – ou limitados a ser algo a partir de uma característica que neles se destaca.
Todos enxergam e reagem, a depender daquilo que carregam dentro de si. Quase sempre com a desfaçatez. Invisibilizam o que lhes gritam aos olhos. Ocultam do campo de visão aquele que parece perturbar a paisagem. Menosprezam a ponto de ocultar de si a verdade mais verdadeira: a existência do outro.
Quem de alguma forma detém o poder é quem faz o filtro conveniente daqueles que podem ou não aparecer num determinado momento, e quando. Tais critérios fazem parte de uma qualificação desumana, que minoriza um determinado grupo social por uma valoração arbitrária a ele atribuído.
A quem não entende o conceito de minoria, ei-lo. Não representam os mais numerosos, simplesmente. Por exemplo: aqui no Brasil, temos mais mulheres que homens, mais negros que brancos, (muito) mais pobres que ricos. E tais grupos são minorias, justamente pelo tratamento diferenciado (pejorativo) que lhes é dado, quando comparados com a dita maioria.
E por que uma coluna sobre autoconhecimento deve abordar tal questão? Porque somos feitos de preconceitos, psiquicamente falando. Nosso olhar tende sempre a repetir as referências que já carregamos. E, no Brasil, nosso preconceito ainda tende a criminalizar, desqualificar, incapacitar e ridicularizar tudo aquilo que pertence às minorias.
Cabe a cada um de nós saber pintar no quadro o diferente, e não só o semelhante. Observá-lo com a curiosidade benéfica – não aquela de quem condena a priori, mas de quem visa descobrir o outro. Em sua essência, em suas diferenças. Perceber o seu valor, em vez de atribuir-lhes algum valor.
O ideal de oportunidades iguais desagrada a muitos. A dor maior é saber que ainda pode não ser aceito pela maioria – uma maioria feita de minorias, muitas vezes conscientes de sua condição, mas inconscientes de sua força. Mas, a cada reflexão, viabilizamos parcialmente o que hoje soa como mera utopia.