Ser incompetente não é um problema, o ruim é não admitir isso
Não valoramos os dons, por não acreditarmos neles ou achá-los insignificantes
atualizado
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Eu não tenho nenhum talento para esportes. Não funcionou na infância, nem na adolescência. Não seria hoje. Entender isso me poupou muita coisa, especialmente tempo. Pude, com a energia não gasta com a insistência, explorar outras potencialidades. Não fui para os Jogos Olímpicos, mas estou aqui. Analista, tarólogo, escritor.
Mas eu poderia ainda sofrer por aquilo que, na minha fantasia, eu poderia ter desenvolvido. Poderia me imaginar muito mais feliz sendo o que não fui, e o que, provavelmente, nunca hei de ser. Poderia sentir-me um fracassado. Mas, pensando bem, até aqui, foram mais os sonhos desperdiçados que os aproveitados.
Todo esse pensamento desarticula por completo a filosofia Lua de Cristal (“Tudo pode ser, se quiser, será / O sonho sempre vem pra quem sonhar”), assim como todas as teorias de autoajuda barata, que massacram pela ideia de empoderamento irrestrito. Isso é um tormento para pessoas comuns, como eu e você.
Talentos desperdiçados
Nascemos com um repertório muito raro de dons. Ao longo da vida, descobrimos (e nos afinamos com) um ou dois – e olhe lá! É o bom e velho “nasceu pra isso”: a capacidade inata, que beira o divinal. Sai naturalmente, quase perfeito, sem muito esforço. E com reconhecimento imediato dos demais, como se estivéssemos a serviço de algo maior que a nossa necessidade.
Depois disso, temos aí uma carta de talentos possíveis. Aquelas potências, vindas de uma aptidão natural. Mas que aparecem como pedras preciosas em estado bruto: podem render bastante, mas carecem de trabalho para que possam revelar a natureza mais pura.
Abaixo disso, as qualidades ordinárias. Tudo aquilo que a vida exige, que precisamos aprender a desenvolver por necessidade – mas que também não nos marcarão enquanto indivíduos. É o feijão-com-arroz da existência.
O que sobra é nossa teimosia. Aquilo que não nos contentamos em admirar e valorizar no outro, simplesmente, mas insistimos que também somos capazes de fazer. Quase sempre, isso vai nos depredando a vida, somente pela birra de nos admitirmos incompetentes para tal feito. Por que nos gastamos tanto naquilo que não nos cabe, enquanto o que nos cai perfeitamente vai sendo esquecido?
Fora do lugar
Ou seja, grande parte do nosso mal-estar brota de uma leitura superficial de nós mesmos. Negligenciamos talentos, que mereciam ser lapidados. Não valoramos os dons, por não acreditarmos neles ou achá-los insignificantes. E damos uma importância tremenda para aquilo que nunca iremos ter. E, aos poucos, afastamo-nos do conceito de competência.
Ela parte de um princípio básico. Uma macieira não dará laranjas, por mais esforço que faça. Mas poderá produzir ótimas maças, as melhores do mercado. O difícil é não ceder ao chamamento da competência irrestrita. É o complexo do “tutti-frutti”: mimetizarmos o “sabor” alheio, e nos distanciamos do nosso – e sempre soará artificial.
A boa incompetência
Quem vive assim, pronto para tudo, pode até ser legal, mas nem sempre trará resultados. Ou, pior, poderá atrapalhar quem é competente. A incompetência só é problema para quem insiste em se encarregar daquilo que não tem habilidade para desenvolver e acaba interrompendo o fluxo natural das coisas.
Admitirmo-nos incompetentes salvaria o mundo de muitas atrocidades. Isso não é má vontade para melhorar, nem baixa autoestima. É justamente o contrário: preciso aprender a valorizar e fortalecer o que sou e tenho, e não o que está distante de mim.
É essa consciência, inclusive, que não permite que a frustração do que não sou drene a energia do que posso vir a ser, e da diferença que posso fazer no mundo. Até porque, nos epítetos das lápides, ficam gravados o que fomos, e não o que poderíamos ter sido.