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Paris e Rio Doce: o horror e a “solidariedade estética”

Vivemos um momento que evoca a empatia. Mas sejamos sinceros: fazer o bem é diferente de encenar o bem.

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ALEX RIBEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO
Cristo Redentor é iluminado com as cores da bandeira da França
1 de 1 Cristo Redentor é iluminado com as cores da bandeira da França - Foto: ALEX RIBEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO

No início deste ano, foi noticiado que, num período de dois dias, dois mil seres humanos foram exterminados na Nigéria por grupos radicais islâmicos. A Nigéria é longe. É desinteressante. É pobre. É inexpressiva. Qual é o ponto turístico da Nigéria? Qual o grande monumento? Que lugar ocupa na fila do glamour? Onde se faz um bom selfie na Nigéria?

Em Paris, não. É tragédia sem precedentes. Dá dó. Preocupa. Pray for Paris. Graças a Deus, meus amigos que vivem lá estão bem. O mundo não pode continuar assim, tenho de expressar minha revolta. Vou usar aqui o aplicativo da rede social para pintar minha fotografia com as cores da bandeira francesa.

Não é a geografia que separa Nigéria, França, Síria e demais lugares assolados pelo terrível fundamentalismo. Nem é o ódio: todos os ataques são motivados pela intolerância, pelo desejo de extermínio de tudo que é diferente. É a imagem que distingue tais nações. Ou, como ressaltou um amigo: “até a solidariedade é estética!!”.

Dois pesos, duas medidas
Esse é um ato de terror que cometemos sem perceber. O mendigo loiro e de olhos azuis ganha espaço nas mídias, enquanto o coração dispara apreensivo na aproximação do rapaz negro na calçada. A piada sobre o nordestino, a travesti, o macumbeiro, o aleijado… Tudo isso ofende menos do que o xingamento que recebo quando cometo alguma atrocidade no trânsito.

Na mesma semana, nosso país se deparou com o maior desastre ambiental da história. Uma população foi engolida pela lama. Resíduos tóxicos mataram um rio, e levarão um rastro de dano que irá desembocar no oceano. Não é preciso ser vidente para saber que a contaminação amaldiçoará gerações. Mas onde mesmo fica Mariana?

E se a lama da desgraça manchasse Ipanema, Copacabana? Se a vila atingida fosse Trancoso? Se as lembranças das últimas férias fossem maculadas? Certamente, a rede social providenciaria um aplicativo para alterar fotos de perfil. E a solidariedade seria instantânea.

A empatia é um afeto que se apresenta quando conseguimos nos ver no lugar do outro. E isso é muito mais fácil de acontecer quando reconheço o outro como um semelhante. Ou quando vejo o outro como um modelo a ser seguido. Duro é reconhecer a necessidade de quem não me assemelha.

Além disso, a “solidariedade estética” pouco faz em resultados práticos. Costuma não passar da fotografia, da frase indignada. É insuficiente para transformar, pois dura apenas o período de ebulição do assunto. Natural que seja assim: em nossa vida, só perdura o que vem da alma.

Encenar o bem
Todos nós investimos em personas, ou seja, papeis sociais que assumimos frente ao mundo. Os valores cultivados aí são oportunistas e utilitários. Somente investimos neles enquanto nos gratificam. E a principal gratificação que vem da persona é ocultar temas perturbadores, controversos, que nos colocam em contradição.

Dessa forma, a solidariedade estética pode apontar justamente para sua sombra: o egoísmo, a incapacidade de enxergar o mundo pelos olhos do outro. Olhe o parisiense e o membro do estado islâmico; o dono da mineradora e o ribeirinho afetado pelo desastre. Encenar o bem é diferente de fazer o bem. A compaixão vai além das diferenças.

Não questiono tudo isso para comparar tragédias. Dor e sofrimento são medidas intransferíveis. As duas, e as demais que fazem o mundo soluçar, merecem nossa atenção plena, nossa contribuição plena. Isso só se faz com a verdade de sentimentos.

Crises apontam para o colapso, ou para a transformação. Tudo dependerá do trato que assumirmos. Por aqui, seguimos morrendo. Vi numa charge que Deus resolveu tirar férias. Primeiro, temi por parecer verdade. Mas não: certamente, Ele está mais atento do que nunca. Distraídos estamos nós.

***

Sento para escrever esse texto, ligo a seleção aleatória de músicas do meu computador. A primeira que toca é o Hino Nacional Brasileiro, gravado por Fafá de Belém em 1985, no álbum Aprendizes da esperança. Eu tinha cinco anos. Não entendia nada do que ocorria com o cenário político da nação. Mesmo assim, chorava cada vez que a canção era repetida.

No começo, minha mãe se preocupava, depois virou piada familiar. Isso aconteceu incontáveis vezes, afinal a música foi o tema das Diretas Já, da comoção pela morte de Tancredo. Desta vez, tocou e não chorei. Algo mudou em mim. Amargor da desesperança, sobriedade do amadurecimento? Temo que, como ocorreu na minha infância, os temas que trago nesse texto passem a ser tratados como algo banal. Ou, pior: virem motivo de piada.

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