O que o sucesso de “50 tons de cinza” revela sobre nós?
O masoquismo constitui uma dinâmica relacional complexa, manifestada nos vínculos de mais diferentes naturezas
atualizado
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Na época, as pessoas ficaram meio espantadas. Em 2011, vimos os mais variados públicos dedicados ao livro “Cinquenta tons de cinza”, da inglesa E.L. James. No ano seguinte, publicaram o restante da trilogia. O conjunto passa da marca de 150 milhões de exemplares vendidos no mundo. Certamente, não foi pela qualidade literária.
O sucesso foi adaptado para o cinema. Em 15 dias, estreia o último, “Cinquenta tons de liberdade”. Multiplicaram-se, também, títulos semelhantes. O jogo de dominação e submissão erótica entrou em alta, o masoquismo virou moda. Talvez muitos não soubessem o porquê, simplesmente, não conseguiam largar a leitura, antes de chegar ao final.
É bem provável que estivessem fisgados por uma questão projetiva. Esse é o termo usado para definir um caminho escolhido para lidar com fatores inconscientes. Ou seja, com conteúdos que fazem parte de nós, mesmo de forma inconsciente.Ao identificarmos algo ou alguém semelhante à parte do nosso inconsciente, dá-se uma adesão (ou repulsa) imediata. É como se, nessa relação estabelecida, conseguíssemos encontrar uma tradução daquilo que não conseguimos expressar.
A história de “Cinquenta tons…” não me chamou atenção. Mas o interesse dos leitores, sim. Na época, eu cursava uma especialização em Dependências, Abusos e Compulsões e resolvi estudar o masoquismo. E percebi que a questão vai muito além de punhos atados com gravatas cinzas.
O masoquismo constitui uma dinâmica relacional complexa, que se manifesta nos vínculos de diferentes naturezas: em casais, entre familiares, em relações profissionais, religiosas e etc. Nela, o castigo é visto como uma manifestação distorcida de afeição: cuidado, carinho e atenção se confundem com a imposição e a submissão.
Na prática clínica, é comum encontrar casos. São incontáveis os atos narrados que, em nome do amor, provocam sofrimento, humilhação e dor. Assim como são inúmeras as ações de “sacrifício” aos quais muitos se submetem para garantir a presença de quem lhes parece importante. Essa é a essência masoquista.
A origem dessas distorções é incerta, varia caso a caso. Mas, em geral, derivam de distorções familiares, traumas infantis e sexuais. Ainda que pareça estranho, o masoquismo se manifesta como uma estratégia psíquica para lidar com essas problemáticas, a fim de evitar um colapso ainda maior.
Assim como as personagens de E.L. James, quem vive a questão vê em si profundas contradições: sentem orgulho por serem importantes para o outro naquela relação, mas atravessam sempre por um caminho constante de insegurança, de dubiedade e de culpa.
O sofrimento maior não é o castigo em si, mas a ressaca derivada dele. Quem conhece a obra lembrará do que estou falando.
A identificação com os livros, mesmo inconsciente, mostra que a questão é comum, mas controversa. Especialmente pelo tratamento dado ao tema: ou muito caricato ou extremamente patológico.
Com isso, muitos sentem dificuldade de relacionar o tema com a própria história. Mantêm-se em silêncio, em situações abusivas e com grande potencial de sofrimento psíquico.
Assim como qualquer produto da psique, a dinâmica masoquista tem uma função simbólica: visa expressar e integrar o que não foi devidamente assimilado. Escutá-la permite à alma se realizar, apesar das feridas impostas pelo mundo.
Palestra sobre o Masoquismo – João Rafael Torres
Auditório da Livraria Paulus (SCS Quadra 1 – Asa Sul), às 9h. Informações e inscrições pelo WhatsApp (61) 98341-0228.