Estamos sempre em busca de autorização para realizar nossa história
Pais, sociedade, Deus…convivemos o tempo inteiro com estruturas regulatórias as quais cerceiam aquilo que somos
atualizado
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Dia desses, surgiu em minha mente uma das minhas memórias mais remotas. Deveria ter uns 4 anos, estava com minha mãe na casa de uma tia. Na hora do lanche, a tal tia oferece um biscoito caseiro. Meu desejo era de aceitar, mas não antes de conferir com um olhar se deveria ou não.
Eu não estava simplesmente atendendo aquela máxima materna de não aceitar nada de estranhos. Era minha tia. Minha família. Ambiente de intimidade. Mas, ainda assim, a necessidade da aprovação materna passou na frente.
A lembrança me fez questionar quantas e quantas vezes o gesto não se repetiu ao longo da infância, da vida. O quanto não se repete até hoje. Onde posso chegar? O que me é permitido fazer? O que não irá desagradar, qual a medida do risco a assumir?
Quando tudo isso veio à mente, fiquei mais atento ao comum existente nesse comportamento. Muitos me buscam no consultório sofrendo exatamente por não saber o quão autorizados estão para assumir as próprias escolhas. Ainda se veem vigiados por um olho incessante, que tudo vê.
O olho dos pais, da sociedade, do deus que os rege. A censura, a moral, o dogma. Convivemos o tempo inteiro com estruturas regulatórias as quais, em alguns momentos, cerceiam aquilo que somos. Elas nos impedem de realizar a nossa própria história.
E, em parte, reforçamos tais desígnios, por entendermos o peso do enfrentamento. A vida legítima, autoral, exige que estejamos prontos para frustrar expectativas que nos foram projetadas. O que deveríamos ser nem sempre é compatível com ser o que somos.
A autorização que buscamos fora é um subterfúgio para nos sentirmos menos responsáveis por um fracasso ocasional. A culpa dividida faz a sanção parecer mais leve.
Quando conduzidos pelo não, pela desautorização, estaremos sempre permeados pela impotência ou pelo ressentimento. Este, inclusive, poderá revelar uma revolta brutal, capaz de tentar aniquilar o que supostamente travou o processo. Esta será uma raiva vazia, mal colocada, simplesmente por não conseguir refazer o irreparável: o passado.
Associamos o poder fazer com o poder ser, ou seja, com a capacidade de existir como seres individuais. Colaborando entre os semelhantes, mas ressaltados pelas diferenças. Como partes integrantes de uma mesma célula: com particularidades, mas em consonância para atender o todo.
Nunca saberemos o sabor do biscoitos recusados, seja por medo, insegurança, repressão. Também não poderemos acumular, nas nossas memórias, as oportunidades desperdiçadas – tendo elas oferecido os resultados almejados, ou não.
Seremos bem lembrados quando a nossa história for contada por nossos atos, especialmente os audazes, revolucionários. E não pelas possibilidades daquilo que poderíamos ter sido, mas não fomos.