Elke era uma maravilha: paradoxo da fantasia louca e da realidade crua
Foi preciso morrer para brilhar novamente na memória do brasileiro, para que a enxergassem além da purpurina. Uma injustiça, um desperdício
atualizado
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Elke, excêntrica. Essa era sua mais pura definição: fora do centro, distante do padrão. O rosto lindo e o olhar esperto não eram suficientes para definir seu esplendor. Ela precisava de perucas, maquiagens, pedrarias. De muitas ilusões para que chegássemos perto do tesouro que guardava. Cores e brilhos aguçavam o magnetismo no primeiro impacto. Em seguida, ela se revelava.
Elke, alegria. Sorriso imenso e fala mansa. Chamava a todos de “criança”, porque, de fato, crianças somos (por inocência ou imaturidade). Esse era o lado com o qual ela gostava de se relacionar.Sem ser piegas, nem pedante. Apenas explorava o lúdico, a brincadeira, a criatividade. Com ela, sempre parecia tarde de sábado, dia de bolo com guaraná. Desmontava qualquer rabugice com a espontaneidade.
Elke, inteligência. A coerência do argumento era dada pelos livros, peças e filmes. Rica, profunda em suas palavras. Recusava-se a falar, quando não tinha o que dizer. Estive com ela numa ocasião. Conversamos por telefone outras duas vezes. Em todas, o que gritava era lucidez – um paradoxo à imagem que estampava. Era direta, crua, consistente, surpreendente.
Elke, coerência. Obviamente, sabia que representava um personagem em nosso imaginário. Mas não se deixava tomar pela superficialidade que isso poderia representar. Tinha um olhar filosófico para a realidade, típico das almas lapidadas pela consciência. Pensar o mundo era involuntário. Engajada especialmente na defesa daqueles que ficam eclipsados pelo preconceito. Enxerga força nos indefesos, enquanto vê o ridículo dos que se acham poderosos.
Elke, esperta. “Foi brincar de outra coisa”, num canto que não sabemos qual é, num momento em que o mundo parece estar mais careta e intolerante. “Nossa liberdade é de escolher a prisão em que queremos ficar”, disse. Ao que parece, estamos bem equivocados nas nossas decisões. Ela, sagaz, libertou-se da ignorância, dos jogos tacanhos, do mundo do “eu primeiro”.
Foi preciso morrer para brilhar novamente na memória do brasileiro, para que a enxergassem além da purpurina. Uma injustiça, um desperdício
Elke, exemplo. Um enfeite do mundo, um incremento, um realce – por aquilo que mostrava de fora para dentro, mas principalmente pelo que vinha de dentro para fora. Representa a boa fantasia, encantadora, que revela um mundo além do óbvio. Tantos adjetivos denotam minha óbvia admiração. E também meu desejo de que a alma permita-nos sorvê-la, por inspiração. Carecemos de suas maravilhas.