Descartáveis: a tecnologia é a verdadeira vilã das relações?
O que distingue uma ferramenta de uma arma é a destreza de quem usa
atualizado
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“Qualquer conflito, block. Qualquer obstáculo, desistência. Qualquer preguiça, vácuo.” Quem usa aplicativos de relacionamentos conhece bem tais reclamações. O excesso de objetividade aponta para o insucesso nas relações provenientes desse meio. Mas seria o caso de abolir essas ferramentas?
Para começar, precisamos falar sobre expectativas. O que as pessoas realmente buscam quando se dispõem a uma relação? Muitas vezes, a redenção para uma série de questões que ninguém – absolutamente ninguém – conseguirá sanar. O erro começa aí.
Acrescente uma fixação fanática desenvolvida para lidar com a tecnologia. Ficamos encantados com a capacidade das máquinas de resolver processos, anteriormente demorados, em instantes. Cremos que isso pode se estender para quase tudo. Por exemplo: para a dificuldade de relacionarmo-nos com nossos semelhantes, o grande drama humano.
Para fechar essa fórmula, coloque aí a complexidade de toda uma geração para lidar com frustrações, morte, insucesso e a limitação do desejo. De um lado, pitadas de ideais românticos, de uma vida planejada e executada com perfeição. Do outro, o prazer disponível a um deslizar dos dedos.O resultado é uma bomba. Um aplicativo passa a ser visto como o portal mágico, a partir do qual serão sanadas todas as carências, com o mínimo de esforço, sem nenhum prejuízo.
E, quando aquilo (o outro é um objeto, e não um sujeito) não servir, basta descartá-lo para que venha um novo rosto. O ideal da felicidade instantânea e perene. Como se fôssemos dignos de perfeição.
É como se, de um lado, tivéssemos perdido a capacidade de reconhecer e acolher a falta em seu semelhante. Mas, do outro, duplicamos a exigência para sermos reconhecidos, valorizados, queridos, desejados. Provavelmente por perdermos a habilidade de fazermos isso por nós mesmos.
Buscam-se pessoas perfeitas instantaneamente, porque tudo parece se resolver assim. Nunca é. Viver é um processo penoso. Relacionar-se, idem. Exige muito para que dê certo.
A agilidade desse mundo virtual retira o terreno para idealizações. Quem não quer não se vê obrigado a arrodeios ou subterfúgios para uma negativa. O anonimato promove uma frieza para que relações desinteressadas se dissolvam. Às vezes, é verdade, isso se dá de forma cruel.
Mas a carência pode levar a interpretações distorcidas da realidade. Este é o cerne da ilusão: enxergar o que gostaríamos, e não o que o outro está de fato disponível a oferecer. Nisso, os aplicativos também contribuem: quanto menor a altura, menor a queda.
Condenar os aplicativos por tudo isso é querer inverter o jogo. Nós os fazemos, e não o contrário. São apenas canais de comunicação, como qualquer outro. Lá estão as pessoas que você conheceria numa festa, ou amigos de amigos. Neles, porém, você poderá ter uma visão muito mais direta das intenções. Inclusive quando o interesse é meramente sexual.
O que, convenhamos, não é exatamente um erro. Um lance fulgaz pode levar a uma relação mais profunda e saudável do que aquela nascida da forma mais ortodoxa. O sexo ainda é bastante demonizado, como se também não fosse uma forma efetiva de conhecer o outro.
Na prática, o sucesso de um casal deriva da honestidade dos agentes. Mais do que das intenções de quem, sozinho, vislumbra um casamento no primeiro encontro. Este, no fundo, busca parcerias redentoras e salvação para a própria história.
O que distingue uma ferramenta de uma arma é a destreza de quem usa.