A obsessão por ser normal é uma doença limitante e vazia de sentido
Tudo o que temos de características pode nos servir ou nos escravizar, a depender do uso dado
atualizado
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Institutos de estatística servem para ler a realidade de uma nação, de um povo, de um segmento social. Dão a noção de predominância de casamentos, de religiosidade, da relação trabalho e remuneração.
Apontam para o ponto médio da população: quantos anos estudamos ao longo da vida, quantos filhos temos e com qual idade, no que aplicamos nosso salário, o peso estimado para a altura. E, a partir desses números, são geradas políticas públicas, bases eleitorais, curvas de crescimento ou de decréscimo.
No entanto, muitas pessoas transformam a própria vida numa comparação entre diversos parâmetros estatísticos. É uma gente que sofre por não conseguir se enquadrar no padrão-IBGE.
Acham estar atrasadas demais, ou adiantadas demais, no curso natural da vida. Entendem haver um momento certo, um quê de normalidade para ser resguardado. E nisso perdem toda a espontaneidade do ser o que se é. Estão fora do padrão, e sofrem com isso.
Os limites entre o normal e o anormal pautam a filosofia, e não é de hoje. De Platão a Elisa Lucinda, passando por Foucault, questionamo-nos sobre os benefícios e malefícios da rotina. A busca desmedida pela aceitação nos leva a crer num padrão de razoabilidade dos nossos atos, pensamentos e sentimentos.
Mas, muitas vezes, sangramos diversas possibilidades de aproximação da felicidade, em nome de um tal “o esperado” – tememos tudo espontâneo ou exasperado, tudo que nos destaque de forma única.
Posteriormente, nos queixamos da mediocridade do ser: ressentidos por sermos “mais um no mundo”, encontramos valores do lado de fora e o esvaziamento do lado de dentro.
Jung nos ensina: para o homem se sentir realizado diante de sua meta existencial, ele precisa entrar em contato com o âmago da própria essência. É o que ele definiu como processo de individuação.
O passar da vida nos permite perceber, e ressaltar, cada nuance de nossa personalidade. As potências afloram, em qualidades ou em defeitos, e aprendemos a lidar com elas de uma forma genuína. Tornamo-nos cada vez mais particulares, individuais.
Aprendemos qual a nossa função no mundo, qual legado deixaremos aos demais. A partir de então, a necessidade de pertencimento a grupos restritos cessa: entendemos que todos pertencem a um todo, de forma orgânica e funcional.
Sob essa óptica, o progresso está diretamente vinculado à necessidade de aceitação do que somos. Não de uma forma estanque, com a crença em uma sina que engessa nossos passos (a de filosofia-de-Gabriela: “eu nasci assim, eu cresci assim, sou mesmo assim, vou ser sempre assim…”). Todas as nossas características podem nos servir ou nos escravizar, a depender do uso dado.
Os limites das tabelas nos oferecem uma falsa ilusão de normalidade, o que dá acolhida e alívio. A normose, quando a obsessão por ser normal desencadeia uma neurose, é a doença mais agressiva da civilização: ela se traveste de saúde, infiltra-se nos nossos pensamentos como uma necessidade, e dificilmente é diagnosticada como um mal. É autolimitante, vazia de sentido e superficial.
Submeter-se a julgamentos estatísticos ou dos nossos “formadores de opinião” (família, amigos, sociedade etc.) é como fixar um teto muito baixo diante de uma alma que quer continuar crescendo.
Tais parâmetros servem apenas como referência de amostragem para quem gosta ou precisa contabilizar e padronizar feitos. É coisa de indústria em larga escala de produção. E nossa alma é artesanal, por natureza.
Tanto que a individuação é sempre considerada um processo: ou seja, não há individuados, e sim individuandos. Ser normal é seguro, mas importante mesmo é ser especial. E, para isso, a fórmula é simples: ser leal a si.