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A ameaça de caos nos desperta comportamentos primitivos

Os sentimentos invocados por uma situação extrema, como a que vive o país atualmente, variam entre a ira e a euforia e são perigosos

atualizado

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Street riot
1 de 1 Street riot - Foto: Istock

No topo de montanhas geladas, famílias se deliciam com uma refeição bizarra: animais são fatiados vivos e a carne é distribuída a todos, inclusive crianças. As pessoas estão tranquilas e carregam um ar de superioridade. Alguns, de tão saciados, cochilam sobre os ombros.

Num prédio luxuoso e asséptico, pessoas aguardam numa fila a vez de buscarem sua alimentação. Peças de cadáveres humanos são colocadas em baldes metálicos, enquanto um simpático maître aguarda para prepará-las, a gosto de cada cliente. A partir de agora, essa será a comida disponível.

Tais cenas são reproduções dos sonhos de dois clientes que recebi nessa segunda-feira (28/5). Ambos se mostraram surpresos com os conteúdos dantescos, relacionando imediatamente as imagens com o cenário desenhado no país na última semana: a ameaça de caos fazendo aflorar em nós nossa parcela mais fria e cruel.

Brigas violentas em postos de combustíveis, estoques desnecessários de alimentos, medo de estar nas ruas. Comportamentos que evocam a nossa base mais primitiva: o instinto de sobrevivência. Desmedido e impensado, como costuma ser a manifestação desse sentimento.

Por outro lado, nunca os memes foram tão rápidos e cômicos. O humor é um caminho ancestral que encontramos para lidar com aquilo de mais perturbador. Rir de nossas misérias apazígua o sofrimento por elas causado.

Experimentamos aquilo chamado por Jung de rebaixamento do nível mental: somos tomados coletivamente por uma força primária, que reduz a nossa resposta individual e a capacidade de discernimento. Naquele momento, somos massa e assim reagimos.

Acontecia nas carnificinas e execuções em praça pública, enquanto a plateia se exaltava mais a cada morte. Acontece num estádio de futebol, com a torcida, quando o time favorito faz gol. E ocorre no êxtase religioso.

Uma onda invisível nos invade e deixa à parte o bom senso. Perdemo-nos em atitudes. Quem rege é o afeto, puro e simples: medo, ira, devoção, alegria. Não importa qual seja, é perigoso. O desvario é a porta para grandes desgraças.

Descartados os conteúdos pessoais, avalio que os sonhos descritos são um retrato eficaz da sensação sentida por muitos de nós: o desespero de testemunhar uma realidade tão crua, o medo do futuro, a angústia diante dos dilemas éticos.

Estaria para os sonhos arquetípicos descritos por Jung: a representação de conteúdos que atravessam a humanidade num determinado momento. Uma constatação da existência do inconsciente coletivo que, por motivos desconhecidos, resolveu manifestar-se em imagens oníricas.

Torço apenas para cada gota de sangue funcionar como símbolo de todos o sacrifício ao qual já fomos submetidos. E a impessoalidade dos personagens neles envolvidos sirva de alerta para contermos o nosso cinismo e pequeneza diante das mazelas humanas. E que os sonhos não sejam prenúncio de cenas ainda mais terríveis.

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