Roger Waters: entenda as acusações de antissemitismo contra o músico
Roger Waters, que recentemente se reuniu com Lula, já foi acusado de antissemitismo e criticado por usar roupa com referência ao nazismo
atualizado
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Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.
Conteúdo investigado: Publicação em canal do Telegram compartilha notícia do G1 sobre uma visita do músico britânico Roger Waters ao presidente Lula no Palácio do Planalto. A postagem xinga o petista e diz que o ex-baixista do Pink Floyd é o mais famoso antissemita do mundo. O conteúdo alega ainda que Waters faz show com uniforme nazista e que foi proibido de se apresentar nos Estados Unidos por conta disso.
Onde foi publicado: Telegram.
Contextualizando: O músico Roger Waters visitou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em Brasília, em 23 de outubro, um dia antes de fazer show na cidade. O encontro foi divulgado pelo próprio presidente em publicações nas redes sociais. “Há cinco anos, @rogerwaters tentou me visitar em Curitiba e foi impedido. Hoje, quando ele retorna ao Brasil, nos encontramos no gabinete da presidência no Palácio do Planalto”, escreveu o petista em post no X (antigo Twitter).
Waters é um histórico apoiador do movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções, em tradução do inglês), contra a expansão do Estado de Israel sobre territórios também reivindicados por palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Por conta disso, ele é recorrentemente acusado de antissemitismo por entidades judaicas. Para muitos judeus, o apoio ao BDS é uma forma de antissemitismo. Além disso, o músico foi acusado de usar termos ofensivos a judeus e criticado por usar a Estrela de Davi em um contexto negativo.
Waters afirma, no entanto, que não é nem nunca foi antissemita. Ele contesta que a definição de antissemitismo colocada sobre ele parte de pressupostos distorcidos de que toda crítica a Israel seja inerentemente antijudaica e de que o sionismo seja um elemento essencial da identidade judaica.
A alegação de que Waters veste uniforme nazista faz alusão à performance comum do músico em shows ao cantar “In the Flesh”. Nessas ocasiões, ele veste um sobretudo militar com uma braçadeira vermelha, conjunto parecido ao de militares da polícia nazista SS, e empunha uma metralhadora falsa contra os fãs.
O músico afirma que se trata, no entanto, da interpretação crítica de um personagem: o roqueiro fictício Pink, que acredita ser um ditador fascista. Ele aparece em shows e na iconografia do Pink Floyd desde os anos 1980, quando foi lançado o álbum conceitual “The Wall”, que conta com a canção “In the Flesh”.
Já sobre a alegação de que Roger Waters foi proibido de se apresentar nos Estados Unidos, não há registro que sustente isso. Um show dele em Frankfurt, na Alemanha, previsto para 28 de maio deste ano, chegou a ser cancelado provisoriamente por autoridades locais que acusavam o músico de antissemitismo. No entanto, a apresentação foi liberada posteriormente, por decisão da Justiça.
Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: Diante do contexto da guerra entre Israel e o grupo extremista palestino Hamas, a publicação pode levar a crer que o encontro entre Lula e Roger Waters sinaliza um endosso do presidente à suposta posição antissemita do cantor.
O que diz o responsável pela publicação: O canal responsável pela publicação não disponibiliza qualquer informação que possibilite uma tentativa de contato, como endereço de e-mail ou telefone.
Alcance da publicação: A publicação compartilhada pelo canal do Telegram alcançou 4,2 mil visualizações até o dia 26 de outubro.
Como verificamos: O Comprova realizou buscas no Google pelos termos “Roger Waters faz apologia ao nazismo” e por “shows cancelados de Roger Waters”, a fim de, primeiramente, compreender o contexto da associação do artista ao antissemitismo.
Nas buscas realizadas, encontramos reportagens (G1, Veja, Agência Brasil, GZH) falando sobre o mesmo assunto: que Roger Waters utilizou um traje semelhante ao uniforme nazista em um show realizado em Berlim; e, em resposta a tal acusação, as reportagens mostram que o artista justificou o uso da roupa como protesto, e não apologia.
A equipe do Comprova também encontrou materiais publicados na página do próprio artista, nos quais ele negou seu apoio ou qualquer relação positiva com nazismo, e no canal dele no YouTube. Além disso, consultou produções acadêmicas sobre a obra de Roger Waters e do Pink Floyd (1, 2, 3).
Como Roger Waters passou a ser acusado de antissemitismo
As acusações de que Roger Waters seria antissemita são antigas. Em 2010, ele recebia as primeiras críticas após shows da turnê mundial “The Wall Live”, em que ele apresentou um cenário retratando bombas no formato da Estrela de Davi – um símbolo judaico – durante a música Goodbye Blue Sky.
Em 2012, ele afirmou, em entrevista coletiva realizada no Brasil, que apoiava o movimento BDS e que não consumia produtos fabricados em Israel. No ano seguinte, em declaração dada nos Estados Unidos, ele afirmou que “o lobby judeu é extraordinariamente poderoso aqui e particularmente na indústria em que trabalho, a indústria da música”, fala que, na avaliação de quem o critica, reforça o imaginário antissemita do povo judeu como controlador do mundo, poderoso e conspiracionista.
Outra polêmica envolvendo o artista ocorreu em 2015, quando ele insistiu, por meio de uma carta aberta, para que Gilberto Gil e Caetano Veloso, à época em turnê conjunta, não realizassem show em Israel, pedido que não foi atendido. Além disso, ele já pediu para outros artistas que não se apresentassem no país, entre eles Neil Young, Robbie Williams e Lauryn Hill.
Em entrevista de 2017, Roger Waters disse não ter problemas com o povo judeu, mas, sim, com a atuação do Estado de Israel contra palestinos. Ele afirmou, na ocasião, ser “fundamentalmente contra a ideia de pessoas serem subjugadas e privadas de seus direitos. Expressei esse meu posicionamento, e aí sugeriram que eu fosse antissemita, o que não é verdade. Irei para o meu túmulo defendendo os direitos das pessoas comuns”, disse.
Em fevereiro de 2023, Polly Samsom, mulher de David Gilmour, guitarrista do Pink Floyd, tuitou que Waters é “antissemita até o seu núcleo podre”. Ela ainda afirmou na ocasião que o músico é mentiroso, ladrão, hipócrita, sonegador de impostos, dublador, misógino, doente de inveja, megalomaníaco e apologista de Vladimir Putin, presidente da Rússia.
A publicação ocorreu dias depois de Roger Waters ter dito que estava aberto a ouvir o que Putin teria a dizer, apesar de ter chamado ele antes de gangster, e que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também seria culpado pela guerra na Ucrânia. Gilmour republicou a postagem da esposa na ocasião afirmando que cada palavra dela era comprovadamente “verdadeira”.
Em posicionamento mais recente, Waters afirmou ser colocada sobre ele uma noção distorcida de antissemitismo, por não ser contrário ao povo judeu, mas se opor a violações de direitos humanos que entende terem sido cometidas por Israel contra palestinos.
“Sei que o povo judeu é um grupo diversificado, interessante e bastante complicado, tal como o resto da humanidade. Muitos são aliados na luta pela igualdade e justiça, em Israel, na Palestina e em todo o mundo”, escreveu ele em comunicado divulgado em 29 de setembro de 2023.
A manifestação foi publicada em resposta ao documentário “The Dark Side of Roger Waters”, da organização não governamental britânica Campaign Against Antisemitism (Campanha contra o Antissemitismo, em tradução do inglês).
O filme traz acusações de um produtor musical e de um saxofonista que trabalharam com Waters sobre declarações antissemitas dele na rotina pessoal. Por exemplo, ele é acusado de ter chamado seu agente de “judeu de merda”.
A produção também exibe trechos de e-mail atribuído ao ex-músico do Pink Floyd, de 2010, em que ele propõe lançar um porco inflável sobre a plateia nos shows com a Estrela de Davi e um termo antissemita em inglês extremamente ofensivo estampados, entre outros símbolos e expressões.
O assunto ainda retornou aos holofotes devido ao conflito protagonizado por Israel e Hamas, grupo extremista palestino que controla a Faixa de Gaza. O Hamas, sigla do árabe “Ḥarakah al-Muqawamah al-‘Islamiyyah”, significa Movimento de Resistência Islâmica.
Conforme já explicado anteriormente pelo Comprova, o grupo fundamentalista islâmico é considerado terrorista por países como Estados Unidos, Japão e as nações vinculadas à União Europeia. O Hamas foi criado durante a Primeira Intifada palestina, um movimento contra a ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Em sua carta fundadora, de 1988, o grupo rechaça a existência do Estado de Israel.
Não há registro de apoio expresso de Roger Waters ao Hamas, mas, sim, ao povo palestino, que não é representado em sua totalidade pelo grupo extremista. Em 2020, contudo, ele concedeu entrevista à agência de notícias Shehab, afiliada ao Hamas, na qual afirmou que “o sionismo é uma mancha feia e que precisa ser gentilmente removida por nós”.
Em entrevista recente à TV Brasil, o músico britânico chamou de genocídio a contraofensiva de Israel sobre a Faixa de Gaza, termo que já havia utilizado em situações anteriores para tratar do conflito. Afirmou ainda que os ataques eram promovidos pelo governo de Israel, e não pelo povo israelense.
Suposto uniforme nazista retrata personagem dos anos 80
A performance de Waters com uniforme que remonta à SS, citada pela postagem verificada pelo Comprova, ocorre durante os shows do artista no momento em que ele canta a canção “In The Flesh”, que abre o álbum conceitual “The Wall”, do Pink Floyd, de 1979.
Todo o álbum conta a trajetória de uma estrela do rock chamada Pink e explora temas do existencialismo pós-guerra, como totalitarismo, liberdade, loucura e subversão. “In The Flesh”, especificamente, relata a ocasião em que o roqueiro fictício se torna um ditador fascista.
Esse personagem também aparece no filme “The Wall”, de 1982, com o mesmo uniforme preto alusivo à SS e com a braçadeira vermelha que exibe, em vez de uma suástica nazista, dois martelos cruzados. Desde o lançamento do longa-metragem, a figura de Pink é interpretada por Roger Waters em shows.
Ao repetir a performance em um show em Berlim, na Alemanha, em 17 de maio deste ano, a polícia local abriu investigação por suspeita de incitação ao ódio público. Waters disse à época que as acusações de apologia ao nazismo usavam de má-fé e que os elementos de sua performance eram claramente uma declaração em oposição ao fascismo, injustiça e fanatismo em todas as suas formas.
“A representação de um demagogo fascista desequilibrado tem sido uma característica dos meus shows desde ‘The Wall’, do Pink Floyd, em 1980”, comunicou, em nota, na ocasião.
Waters não foi proibido de tocar nos EUA
A publicação investigada alega que Roger Waters foi proibido de fazer shows nos Estados Unidos após usar o traje semelhante ao uniforme de militares da polícia nazista. A afirmação, no entanto, não é verdadeira. O Departamento de Estado dos Estados Unidos chegou a fazer críticas ao cantor após a polêmica performance em Berlim.
O órgão classificou a apresentação como “profundamente ofensiva ao povo judeu”. Além disso, a embaixadora Deborah Lipstadt, enviada especial do país para monitorar e combater o antissemitismo, publicou um tuíte condenando a performance de Waters, que chamou de “desprezível distorção do Holocausto”.
Apesar das duras críticas que recebeu, não há qualquer registro sobre a suposta proibição aos shows do ex-baixista do Pink Floyd no país. A turnê “This Is Not a Drill” teria início em 2020, mas foi adiada por conta da pandemia. Na época, a Liga de Baseball dos Estados Unidos anunciou o cancelamento das publicidades dos shows em suas plataformas após sofrer críticas de organizações judaicas.
Mesmo com a polêmica, a turnê passou pelos Estados Unidos entre julho e outubro de 2022, ou seja, antes da apresentação que foi alvo de críticas, em Berlim.
Durante a passagem pela Europa, Waters chegou a ter um show cancelado em Frankfurt, na Alemanha. A apresentação estava prevista para acontecer em 28 de maio, no Festhalle, uma casa de eventos que, durante a Segunda Guerra Mundial, funcionou como centro de detenção do regime nazista.
O conselho da cidade, ao justificar o cancelamento, classificou o cantor como “um dos antissemitas mais conhecidos do mundo”. Outras cidades alemãs também consideraram suspender as apresentações.
No entanto, após o cantor recorrer, a Justiça decidiu manter o show em Frankfurt. O tribunal afirmou que, por questões contratuais, a cidade não poderia impedir o concerto de acontecer. Além disso, considerou que, apesar do uso de símbolos durante o show, não havia indícios de uso de propaganda nazista.
Na apresentação de Berlim naquele mesmo mês de maio, uma mensagem exibida em um telão minutos antes de o músico subir ao palco citou a decisão do tribunal de Frankfurt. “Apenas para ser claro, eu condeno o antissemitismo sem qualquer reserva”, dizia o texto, em tradução do inglês.
Também no show de Berlim, foi exibido no mesmo telão o nome de Anne Frank, adolescente alemã judia vítima do Holocausto, durante uma homenagem a ativistas políticos que foram vítimas de autoridades e governos que Roger Waters considera autoritários. A conta do governo de Israel no X publicou na ocasião que o músico teria profanado a memória da garota e dos 6 milhões de judeus mortes pelo regime nazista.
A homenagem de Waters em Berlim também fez menção, entre outros nomes, a Sophie Scholl, ativista anti-nazista morta por se opor ao regime de Hitler; Shireen Abu Akleh, jornalista palestino-americana morta pelo exército de Israel; Mahsa Amini, jovem morta pela polícia da moralidade do Irã; e George Floyd, afro-americano assassinado por estrangulamento por um policial branco nos Estados Unidos.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Com a escalada do conflito entre o grupo extremista Hamas e Israel, começaram a surgir diversas peças de desinformação envolvendo a posição do Brasil na guerra. O Comprova já verificou que o ministro Silvio Almeida registrou reuniões com embaixador do Irã, país que apoia o grupo extremista, e diplomacia de mais 20 países; que vídeo mostra turistas estrangeiros no Ceará, não integrantes da facção no Brasil; que Biden não disse que Lula deveria se preocupar com comida para brasileiros em vez da guerra; e que o governo Lula assinou acordo de cooperação técnica com Autoridade Palestina, não com o grupo terrorista.