Reforma agrária: STF não alterou lei pondo fim à propriedade privada
Diferentemente do que deputado afirma em um vídeo sobre reforma agrária, lei já exige que a propriedade seja produtiva e tenha função social
atualizado
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Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.
Conteúdo investigado: Em vídeo publicado no YouTube, o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) afirma que um suposto “novo entendimento” do STF sobre a reforma agrária põe fim à propriedade privada no Brasil. Ele afirma que a Justiça passará a exigir a função social das propriedades rurais e que, “é algo que não há definição”. “É pela compreensão e entendimento deles que vai determinar se a sua propriedade pode ser desapropriada ou não. Preste bastante atenção. Se você mora numa chácara, se você tem uma casa e o STF decidir que a sua casa, a sua chácara não cumpre função social, o governo agora, o Estado brasileiro poderá tomar de você essa propriedade”, afirmou.
Onde foi publicado: YouTube, Instagram e Twitter.
Conclusão do Comprova: O Supremo Tribunal Federal (STF) não decretou o fim da propriedade privada no Brasil a partir de um “novo entendimento” da corte sobre terras que podem ser desapropriadas para a reforma agrária. Diferentemente do que Gayer afirma em um vídeo, a legislação já exige que a propriedade seja, ao mesmo tempo, produtiva e tenha função social para que não seja passível de desapropriação.
O voto do ministro da Corte Edson Fachin na ADI 3865, que foi seguido por unanimidade em sessão plenária virtual em 1º de setembro deste ano, só reforçou o que já consta tanto no texto constitucional quanto na legislação que regulamenta a desapropriação de terras para fins de reforma agrária. Ou seja, não houve mudança na lei nem no entendimento dela que permita a desapropriação indiscriminada de terras rurais por parte do governo.
O deputado também desinforma ao afirmar que não há definição de “função social”, o que, segundo ele, poderia servir como brecha para que “o governo tome a sua propriedade”. A função social da propriedade rural está descrita no artigo 9º da Lei 8.629/93.
O direito à propriedade é uma cláusula pétrea da Constituição Federal brasileira de 1988, ou seja, não pode ser alterado por decisão judicial, decreto presidencial ou via Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
No artigo 5º, a Constituição estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Como verificamos: Buscamos o vídeo original e fizemos a transcrição dos momentos em que o deputado falava a respeito da decisão do STF. Em seguida, buscamos no site da Corte a notícia da votação do dia 1º de setembro e a íntegra do voto do ministro Fachin. Consultamos os advogados Juliana Maria Raffo e Marcelo Guaritá, que têm conhecimento no tema, e demandamos o STF, que enviou o acórdão completo do julgamento. Por fim, fizemos contato com o deputado Gustavo Gayer.
Decisão é sobre ADI movida em 2007
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) alvo da decisão de setembro do STF foi movida pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) em 2007. A CNA pedia alterações na redação dos artigos 6º e 9º da Lei 8.629/93, alegando que alguns trechos iam contra a Constituição Federal.
Para o advogado da confederação, a redação dos dispositivos era conflitante. “Admitir que a propriedade produtiva pode ser desapropriada, se não cumprir sua função social, é dar-lhe tratamento idêntico ao dispensado às propriedades improdutivas, tornando letra morta o inciso II do artigo 185”.
É incontestável, para a confederação, a impossibilidade de exigência simultânea dos dois requisitos, “seja para a conceituação da propriedade produtiva, seja para a caracterização da função social”.
O ministro Fachin indeferiu, ou seja, negou o pedido, mantendo a redação atual. A decisão dele foi seguida unanimemente pelos demais membros do STF.
STF não alterou lei a partir de um ‘novo entendimento’
A decisão do STF não produziu novo entendimento que alterasse a legislação referente à desapropriação de terras para fins de reforma agrária. Tanto a Constituição Federal de 1988, ao tratar do tema nos artigos 184, 185 e 186, quanto a Lei 8.629/93, que regulamentou esses dispositivos, já preveem a necessidade do cumprimento da função social para que uma propriedade, mesmo que produtiva, seja imune da possibilidade de desapropriação.
Na Constituição Federal, a previsão legal está expressa no artigo 184, que diz: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. Nos artigos seguintes, 185 e 186, consta a necessidade de lei complementar para regulamentar os critérios de função social, como se destaca abaixo:
- Artigo 185 – Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.
- Artigo 186 – A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei.
Critérios de função social de uma propriedade são definidos
Diferentemente do que é afirmado no vídeo, há sim critérios que definem a função social de uma propriedade. Eles foram estabelecidos na Lei 8.629/93, que regulamentou os dispositivos da Constituição Federal relativos à reforma agrária. No artigo 2º, é dito que “a propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais”.
O artigo 9º, por sua vez, define os critérios da função social:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Em seguida, no texto, são listados os detalhamentos de cada um dos quatro critérios definidos.
Consultada pelo Comprova, a advogada Juliana Maria Raffo, coordenadora da área Cível e de Contratos do Briganti Advogados, confirma o entendimento de que tanto a Constituição Federal de 1988 quanto a Lei 8.629/93 preveem a necessidade de cumprimento da função social da propriedade como critério para que ela esteja imune à desapropriação para fins de reforma agrária.
“Os artigos da Constituição e a Lei da Reforma Agrária [8.629/93] trazem a possibilidade de desapropriação de imóveis que não cumpram a função social”, diz a advogada, acrescentando que “o comumente identificado em uma propriedade produtiva é o atendimento à função social”.
No entanto, há casos em que uma propriedade mesmo que produtiva possa ser desapropriada se não cumprir a função social.
“Por exemplo, uma terra produtiva que usa mão de obra análoga à escrava, que pratica desmatamento ilegal ou o uso ilegal e indiscriminado de recursos naturais disponíveis em sua área não atendem a uma finalidade social. Sendo assim, podem sofrer o pedido de desapropriação. A avaliação se dará no respectivo processo, pois o pedido de desapropriação, nesses casos, deveria indicar e provar que a produção ali existente não atende aos requisitos de função social, especialmente nos aspectos trabalhistas e ambientais”.
Discussão se dará no âmbito de cada processo
O advogado Marcelo Guaritá, membro do Comitê de Leis e Regulamentos da Sociedade Rural Brasileira (SRB), também confirma que a legislação nunca garantiu que o critério da terra ser produtiva por si só fosse garantia de que a propriedade não fosse passível de desapropriação. No entanto, ele afirma que “havia uma crença que isso seria sufiente”.
“O STF agora explicitou que não”, diz o advogado, sócio do escritório PSG Advogados. Assim como a advogada Juliana Maria Raffo, ele concorda que a discussão se dará no âmbito de cada processo.
“O STF fez uma interpretação conjunta dos dois artigos (185 e 186 da Constituição Federal). O problema é a abertura existente sobre os critérios para que se cumpra os requisitos. Qualquer infração, por menor que seja, pode ensejar desapropriação de uma propriedade produtiva? Um descuido sobre as inúmeras normas ambientais e trabalhistas que existem pode levar a esse desfecho? Esse é um risco que atenta contra a segurança jurídica”, avalia o advogado, que acrescenta que esse risco sempre existiu.
Pequenas e médias propriedades não podem ser desapropriadas
No voto, o ministro Fachin apontou que a obrigatoriedade de ser produtiva e ter função social não vale para as pequenas e médias propriedades. A Constituição diz expressamente que elas não podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária, contanto que aquela seja a única terra do proprietário.
“Registre-se que essa condicionalidade não é prevista para o caso da pequena e média propriedade rural, ante a expressa linha de precedentes desta Corte, ainda que, pessoalmente, guarde reservas em relação a ela. Na esteira dessa compreensão pretoriana, porque não se pode interpretar um direito restritivamente sem que haja uma finalidade constitucionalmente admitida, não parece possível admitir a desapropriação da pequena e média propriedade rural”, escreveu o ministro.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o deputado Gustavo Gayer, mas não obteve resposta até a publicação desta checagem. O espaço segue aberto à manifestação.
O que podemos aprender com esta verificação: Fazendo alegações enganosas a partir de frases de impacto como a de que “O STF acabou com a propriedade privada”, o desinformador, além de gerar uma interpretação errada sobre um fato concreto, provoca medo no leitor. A desinformação é agravada pelo fato de que decisões judiciais muitas vezes são escritas de maneira pouco acessível à população. Assim, o desinformador, ao comentá-las, pode transmitir uma versão distorcida dos fatos.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: O Comprova já analisou outros conteúdos sobre o tema, em checagens como Lula não assinou decreto para colocar à propriedade privada, Ministro Edson Fachin não foi advogado do MST, ao contrário do que afirma o post e post confunde dados e engana sobre conflitos no campo no governo Bolsonaro.