Deputada usa dados incorretos para associar doenças graves à vacinação
Postagem de Bia Kicis que cita aumento de doenças entre militares dos EUA após a vacinação contra a Covid19. Dados foram retirados do ar
atualizado
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Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.
Conteúdo verificado: Um tuíte de uma deputada faz referência a um banco de dados militar dos EUA para afirmar que houve um “aumento alarmante” de doenças graves entre membros da Forças Armadas americanas após a vacinação obrigatória contra a Covid-19. Acompanha o post uma imagem que reúne porcentagens do suposto aumento de diferentes problemas de saúde, como ataque cardíacos e abortos.
SÃO FALSAS as alegações em um post no Twitter da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) que faz referência a um banco de dados militar dos EUA para afirmar que houve um “aumento alarmante” de doenças graves após a vacinação contra a Covid-19, obrigatória para membros da Forças Armadas americanas. Acompanha o post uma imagem que reúne porcentagens do suposto aumento de diferentes problemas de saúde, como ataque cardíacos e abortos.
Para o Comprova, é falso o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
O tuíte traz um link a um blog americano de extrema-direita, conhecido por disseminar desinformação, de onde os dados foram obtidos. O texto no blog, por sua vez, menciona uma base de dados interna às Forças Armadas dos EUA, a Defense Medical Epidemiology Database (DMED). O site afirma que as informações sobre as doenças foram vazadas por um advogado que disse representar três “delatores” em um painel no Senado dos Estados Unidos chamado “Covid-19: a second opinion”, organizado pelo senador republicano Ron Johnson, em 24 de janeiro de 2022.
Para determinar que houve um “aumento alarmante” de doenças entre os militares após a vacinação, foram comparados dados dos primeiros 10 meses de 2021 com uma média dos casos registrados anualmente entre 2016 e 2020.
Os dados disponíveis na DMED, no entanto, estavam errados. Peter Graves, um porta-voz do órgão de vigilância sanitária das Forças Armadas dos EUA, afirmou ao site de checagem de fatos PolitiFact que as informações que constavam no sistema sobre os anos de 2016-2020 “representavam uma fração pequena dos diagnósticos médicos reais.” Os dados de 2021, entretanto, estavam corretos — o que causou a impressão de um salto na ocorrência de doenças. Ainda segundo a apuração do PolitFact, a base de dados foi tirada do ar para que fosse identificada a causa do erro.
Procurado pelo Comprova, Graves afirmou que um erro no código de programação da plataforma causou a distorção nos dados entre setembro de 2021 e janeiro de 2022. Devido ao erro, profissionais da saúde militares dos EUA que acessaram a plataforma nesse período viram “um aumento incorreto em uma variedade de diagnósticos”. Segundo o representante do órgão, a falha na programação já foi corrigida.
O Comprova entrou em contato com a deputada federal Bia Kicis, mas não obteve resposta até a publicação desta verificação.
O conteúdo foi classificado como falso, porque se apoia em dados incorretos, que já foram desmentidos, para causar incerteza quanto à segurança das vacinas contra a covid-19.
Atualização: Esta verificação foi atualizada em 14 de fevereiro de 2022 para incorporar informações enviadas pelo Defense Health Agency’s Armed Forces Surveillance Division e recebidas pelo Comprova após a publicação.
Como verificamos?
O tuíte da deputada Bia Kicis traz o link de um blog de extrema-direita, que, por sua vez, menciona os nomes da base de dados militar americana (a DMED) e do advogado que teria vazado as informações em um evento de discussão sobre a pandemia no Senado dos Estados Unidos.
Buscando no Google por termos como “DMED data Covid”, encontramos a checagem do site PolitiFact sobre o caso. O Comprova entrou em contato com o órgão do governo americano responsável pela base de dados, o Health Military System, por meio de um endereço de e-mail disponível no seu site oficial. Não tivemos resposta até a publicação da verificação.
Fizemos contato então com a equipe do PolitiFact para perguntar por qual canal haviam se comunicado com o órgão. O repórter que assina a verificação, Jeff Cercone, nos disse que havia usado o mesmo e-mail listado no site e que, cerca de um dia depois, havia recebido uma resposta do porta-voz Peter Graves. Ele compartilhou com o Comprova o endereço de e-mail de Graves. Entramos em contato com ele, mas também não obtivemos resposta.
Realizamos outras buscas no Google para encontrar mais informações sobre o advogado que vazou os dados da DMED, o painel no Senado do Estados Unidos do qual ele participou, a obrigatoriedade da vacinação de militares nos EUA, e o blog de extrema-direita que publicou os dados. A equipe do Senador Ron Johnson, que organizou a audiência, também foi procurada.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a Covid-19 disponíveis no dia 11 de fevereiro de 2021.
Verificação
A falha no sistema
Segundo o site oficial do Health Military System, a DMED é uma plataforma que confere acesso remoto a um conjunto de dados pertencentes ao sistema Defense Medical Surveillance System (DMSS). Esse sistema reúne “dados atualizados e históricos sobre doenças e eventos médicos (ex: hospitalizações, visitas ao ambulatório, etc.)” de todos os membros ativos e de reserva das Forças Armadas dos EUA.
A DMED pode ser acessada apenas por usuários autorizados, como “profissionais médicos das Forças Armadas dos EUA, epidemiologistas, pesquisadores médicos, oficiais de segurança ou de operações médicas/apoio clínico à vigilância de condições sanitárias nas Forças Armadas dos EUA”.
Os dados da plataforma para os anos de 2016-2020 estavam incorretos, de acordo com o Defense Health Agency’s Armed Forces Surveillance Division, um órgão de vigilância sanitária das Forças Armadas dos EUA. “Os dados cobrindo os anos de 2016 a 2020 estavam corrompidos devido a um erro de programação quando acessados no período entre setembro de 2021 e janeiro de 2022” , afirmou Peter Graves, porta-voz da instituição, em e-mail enviado à equipe do Comprova no dia 14 de fevereiro.
“Quem acessou o sistema para examinar dados entre 2016 e 2021 viu um aumento incorreto em uma variedade de diagnósticos no Military Health System quando comparou os dados de 2021 com o dos cinco anos anteriores”, acrescentou Graves. Na checagem publicada pelo PolitFact, ele ainda informou que, durante o período em que houve o erro de programação, os dados de 2016 a 2020 representavam “apenas uma fração pequena” dos números reais. Os dados de 2021, no entanto, estavam alinhados às informações atualizadas do sistema DMSS — por isso parecia haver um salto na ocorrência de doenças após a vacinação.
Origem dos números
Os dados foram mencionados pela primeira vez pelo advogado Thomas Renz, durante sua participação no painel “Covid-19: a second opinion” (“Covid-19: uma segunda opinião”, em português), organizado pelo senador republicano Ron Johnson, em 24 de janeiro de 2022 no Senado dos Estados Unidos. De acordo com a descrição do vídeo de um trecho do evento postado no canal oficial do Youtube do Senador, o painel reuniu “um grupo de doutores e especialistas médicos” para “trazer uma perspectiva de resposta diferente à pandemia global de Covid-19 em relação ao que se sabe sobre tratamento precoce e hospitalar, eficácia e segurança da vacina, o que deu certo, o que deu errado e o que deve ser feito a partir de agora visando o longo prazo”.
O painel teve mais de 5 horas e meia de duração e a íntegra da transmissão está disponível apenas no site Rumble. Popular entre grupos conservadores dos EUA, a plataforma tem se apresentado como uma concorrente ao YouTube com diretrizes mais flexíveis de regulação de conteúdo. Um levantamento do site Wired mostrou que o Rumble recomenda aos usuários vídeos com desinformação sobre a Covid-19.
Durante sua fala, Renz se apresenta como representante de três “delatores” do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, que teriam tido acesso aos dados. No painel, Renz afirma que possui “dados substanciais” que comprovam o aumento no número de diagnósticos das doenças. Os números apresentados por ele na ocasião estão entre os citados nas notícias dos sites norte-americanos que repercutiram o fato.
No mesmo dia da realização do painel, notícias repercutindo os dados apresentados por Renz começaram a circular em sites conservadores dos Estados Unidos. Renz voltou a discutir os dados em 29 de janeiro, como convidado do podcast Bannon’s War Room. O programa é apresentado por Steve Bannon, ex-estrategista-chefe do ex-presidente dos EUA Donald Trump, também conhecido por disseminar desinformação sobre a Covid-19.
Após a realização do painel “Covid-19: a second opinion”, o senador Ron Johnson divulgou em seu site que havia enviado uma carta ao Departamento de Defesa dos EUA pedindo esclarecimentos a respeito dos números que foram apresentados por Renz. Em 10 de fevereiro, o Comprova entrou em contato com a assessoria do congressista, que afirmou ainda não ter recebido uma resposta do Departamento de Defesa.
Quem é Thomas Renz
Thomas Renz se apresenta como advogado dos funcionários do Departamento de Defesa dos Estados Unidos que levantaram os dados da DMED. Durante a pandemia, ele esteve repetidamente envolvido em peças de desinformação e ações judiciais que contestam a eficácia e segurança das vacinas contra a Covid-19.
Por exemplo, em outubro de 2021, Renz abriu um processo contra o Departamento de Saúde do governo americano em nome da organização America’s Frontline Doctors — conhecida por disseminar desinformação sobre a Covid-19. A ação citava um “delator” que teria descoberto registros de mais de 45 mil pessoas que teriam morrido 14 dias após tomar o imunizante contra a Covid-19. As alegações foram desmentidas por autoridades sanitárias em verificações de veículos como a Reuters e a USA Today.
Um perfil de Thomas Renz no jornal The Washington Post afirma que ele se tornou advogado poucos meses antes do início da pandemia, em novembro de 2019, após prestar o Bar Exam (equivalente ao exame da Ordem dos Advogados do Brasil) pela quinta vez no estado de Ohio. A reportagem destaca que ele passou a ter muita visibilidade durante a crise sanitária, ganhando seu próprio talk show e fazendo mais de 100 aparições em veículos de mídia conservadores dos EUA, até outubro de 2021. Renz também fundou uma ONG que tem coletado doações em prol da “luta pela liberdade médica”.
Sobre o blog de extrema-direita
O tuíte da deputada Bia Kicis apresenta um link para o blog americano The Conservative Treehouse, que é conhecido por disseminar desinformação e já foi classificado como pouco confiável por uma série de organizações dedicadas à checagem de fatos e transparência.
O site consta em um diretório de portais que publicam conteúdo enganoso, elaborado pela FactCheck.org. Segundo a AdFonts Media, o blog tem um viés de “direita hiper-partidária” e é “problemático” e “não confiável”. A NewsGuard deu nota 30 (de 100) à confiabilidade do Conservative Treehouse, alertando que o site “publica conteúdo falso de forma recorrente”, inclusive sobre a pandemia de Covid-19.
O blog foi banido da plataforma de sites WordPress em novembro de 2020, por violar os Termos de Serviço. O próprio Conservative Treehouse afirma ter questionado o WordPress sobre quais regras foram violadas. Em resposta, a plataforma teria apontado para regras contra a incitação ao ódio e para o item 5 das diretrizes aos usuários, que detalha outros “conteúdos proibidos”.
Uma reportagem do site The Daily Beast descreve o Conservative Treehouse como o “paciente-zero” de uma série de teorias da conspiração que circulam na mídia de extrema-direita. O fundador do blog publica sob o pseudônimo Sundance, mas já foi identificado como Mark Bradman, um morador do estado da Flórida. Segundo o Daily Beast, Bradman teria ganhado notoriedade por volta de 2012, por sua defesa de George Zimmerman, homem que matou a tiros o jovem negro Trayvon Martin.
Quem é Bia Kicis
A deputada federal Bia Kicis é presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e uma das principais aliadas do presidente Jair Bolsonaro (PL) no Congresso Nacional, onde já ocupou o cargo de vice-líder do governo.
Kicis é conhecida por disseminar desinformação sobre a Covid-19 pelas redes sociais. No início de fevereiro de 2021, o Instagram suspendeu, temporariamente, transmissões ao vivo na conta da deputada federal. A rede social afirmou que a medida foi tomada devido a “repetidas violações às diretrizes e comunidades do Instagram”.
Em janeiro de 2022, a parlamentar confessou ter vazado, em um grupo de WhatsApp, dados pessoais de médicos que defendem a imunização de crianças contra a Covid-19 em uma audiência pública do Ministério da Saúde sobre o tema. Partidos de oposição solicitaram que a Procuradoria-Geral da República investigue a conduta.
A CPI da Covid conduzida pelo Senado imputou à parlamentar incitação ao crime por meio de divulgação de desinformação em suas redes sociais. O intuito seria incentivar a população a desrespeitar as medidas determinadas pelo poder público para conter a pandemia.
O Comprova já verificou outros conteúdos divulgados pela deputada. Foi classificado como enganoso um post no Facebook em que Kicis misturava dois conteúdos sem relação para mentir sobre a segurança das máscaras de proteção individual contra a Covid-19.
Por que investigamos?
O Comprova verifica informações suspeitas que tenham viralizado nas redes sociais ou aplicativos de mensagens sobre políticas públicas do governo federal, eleições presidenciais e a pandemia da Covid-19. O conteúdo aqui verificado reuniu mais de 10 mil interações no Twitter até o dia 10 de fevereiro de 2022.
A eficácia e a segurança dos imunizantes já foram amplamente defendidas e comprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério da Saúde. Além de prevenir quadros graves da doença, as vacinas reduzem as chances de contaminação e transmissão do vírus. Publicações que mentem sobre isso podem gerar confusão e hesitação quanto à importância da vacinação, colocando vidas em risco.
Recentemente, o Comprova mostrou que a maioria dos infectados pela variante ômicron do novo coronavírus não foram vacinados e desmentiu um conteúdo falso que afirmava que a vacinação causou “milhares de mortes” ao redor do mundo. Um material elaborado para a sessão “Comprova Explica”, também demonstrou porque as vacinas contra a Covid-19 são consideradas seguras e seus benefícios superam eventuais riscos da imunização.