Lula não ordenou a retirada de produtores de arroz de terras indígenas
Retirada de agricultores das regiões de Raposa Serra do Sol, em Roraima, e Suiá Missú, no Mato Grosso, não foi determinação do petista
atualizado
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Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.
Conteúdo investigado: vídeo no Kwai em que homem acusa o ex-presidente Lula de ter acabado com a produção agrícola nas regiões da Raposa Serra do Sol, em Roraima, e de Suiá Missú, no Mato Grosso, “simplesmente ao bel prazer para demarcar terras indígenas”.
As determinações para a retirada de produtores rurais das regiões de Raposa Serra do Sol, em Roraima, e Suiá Missú, no Mato Grosso, em 2006 e 2012, respectivamente, partiram da Justiça Federal, após a Fundação Nacional do Índio (Funai) ter reconhecido as áreas como sendo de ocupação tradicional pelos povos indígenas e a demarcação das reservas ter sido homologada pelo governo federal. As decisões foram resultado de uma longa briga judicial.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
A demarcação de Terras Indígenas (TI) é prevista no Artigo 231 da Constituição de 1988, que afirma que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. O dispositivo legal reconhece o direito dos povos indígenas sobre as terras que originariamente ocupam, “competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
O processo de demarcação das regiões de Raposa Serra do Sol e Suiá Missú, citadas no vídeo verificado, começou em 1993, antes da gestão de Lula (2003-2010).
Alcance da publicação
Até 2 de setembro, o vídeo no Kwai tinha 61,7 mil curtidas, 8.161 comentários e 23 mil compartilhamentos
O que diz o autor da publicação
O Comprova mandou mensagem para o autor da postagem do vídeo enganoso no Kwai, mas não houve resposta até o fechamento desta verificação.
Como verificamos
O Comprova fez pesquisas na internet para esclarecer o contexto da demarcação e homologação de terras indígenas nas regiões de Raposa Serra do Sol, em Roraima, e Suiá Missú, no Mato Grosso. Também foram consultados a Constituição de 1988, os decretos presidenciais que homologaram as terras indígenas e as decisões da Justiça Federal para a garantia do usufruto da área pelos povos originários. O Comprova ainda consultou reportagens na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e entrevistou Rafael Modesto, consultor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Raposa Serra do Sol: apesar de homologada por Lula, demarcação teve início em 1993
A determinação para que os produtores de arroz saíssem da Terra Índigena Raposa Serra do Sol, em Roraima, foi do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, após finalizado o processo de demarcação da reserva (G1, Gazeta do Povo, Folha, O Tempo). Com isso, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deu início ao reassentamento dos não indígenas que tradicionalmente viviam na região.
Apesar de ter sido homologada durante o governo Lula, em 2005, a demarcação da Terra Índigena Raposa Serra do Sol aconteceu após anos de uma briga judicial que teve início em 1998, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Além disso, desde 1993, o local já era reconhecido como Terra Indígena pela Funai.
Mesmo com a demarcação homologada em 2005, o processo se arrastou até 2009, devido a ações judiciais movidas por produtores que alegavam ter direito às terras.
Em 2009, de acordo com matéria da Folha de S.Paulo, o então ministro da Agricultura de Lula, Reinhold Stephanes, saiu em defesa da produção de arroz na reserva. “A produção está concentrada na região norte do Estado, coincidente com a recém-demarcada área indígena”, disse.
Antes da demarcação, Roraima tinha uma área de 22,5 mil hectares para a produção de arroz, segundo dados do IBGE. Hoje, são 8.628 hectares de área plantada. Apesar da diminuição, dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) apontam que, na última safra (2021/2022), Roraima foi responsável pela produção de 88,8 toneladas de arroz, o que equivale a 9% da produção da Região Norte. No ranking nacional, o estado ocupa a 11ª posição.
A Terra Indígena Raposa Serra do Sol fica no nordeste de Roraima, nos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã. A área tem 1.747.464 hectares e é ocupada por cinco povos indígenas: Ingariró, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana.
Terra indígena na região de Suiá Missú foi homologada no governo FHC
A demarcação da Terra Indígena Marãiwatsédé, na região conhecida como Suiá Missú, foi feita pela Funai em 1993, e homologada por decreto presidencial de Fernando Henrique Cardoso (FHC) em 11 de dezembro de 1998. Ela ocupa 165.241 hectares nos municípios de Alto Boa Vista, São Félix do Araguaia e Bom Jesus do Araguaia, em Mato Grosso. Atualmente, segundo dados do site Terras Indígenas do Brasil, 781 indígenas da etnia Xavante vivem no local.
O processo de demarcação e homologação teve início na conferência ECO-92, quando a petrolífera estatal italiana Agip do Brasil, então proprietária das terras, anunciou a devolução da área à etnia Xavante, que havia sido expulsa em 1966 para a implantação da fazenda de gado Suiá Missú. A propriedade chegou a ser considerada o maior latifúndio do Brasil. À época, uma reportagem do Jornal do Brasil repercutiu o anúncio (o texto pode ser acessado na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional).
No entanto, mesmo após a demarcação e homologação, a ocupação da terra por não indígenas, que passou a ser ilegal no território, persistiu, o que motivou o início do processo de desintrusão da região em 2012, ou seja, da retirada da população não indígena da localidade. A determinação partiu do STF, que tornou sem efeito, naquele ano, uma liminar do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que suspendia a desintrusão.
Em 2014, diante de ameaças de nova invasão da Terra Indígena Marãiwatsédé, a Justiça Federal de Mato Grosso determinou nova ação de desintrusão para impedir o estabelecimento de não indígenas na localidade. Nos dois casos, em 2012 e 2014, as ações de desintrusão foram propostas pelo Ministério Público Federal (MPF).
Demarcação de terras indígenas é dever da União previsto na Constituição de 1988
A demarcação de terras indígenas compete ao governo federal, como está previsto no Artigo 231 da Constituição. Segundo Rafael Modesto, assessor jurídico do Cimi, trata-se de um dever da União, que independe da vontade do presidente da República.
“Não se trata de um ato discricionário do presidente que estiver em exercício, mas é uma obrigação estabelecida na Constituição brasileira. Se houver laudo antropológico, científico, que prove que determinada região é tradicionalmente ocupada por povos indígenas, a Constituição obriga que ela seja demarcada e homologada, passando a pertencer à União, mas para usufruto exclusivo da população indígena”, diz Rafael Modesto.
Segundo dados do Cimi, Lula foi o terceiro presidente da República que mais homologou terras indígenas, depois de FHC e Fernando Collor de Mello. Embora a demarcação independa da vontade do presidente da República, há políticas que podem agilizar ou atrasar essas demarcações. Reportagem do UOL publicada em 2021 mostrou que o governo de Jair Bolsonaro atuou para frear as demarcações de Terras Indígenas. Lula, por sua vez, já se manifestou favorável às demarcações durante a pré-campanha. “Temos que ter coragem de dizer que vamos não só demarcar as terras que têm que ser demarcadas como a gente vai acabar com essa história de garimpo ilegal ou com madeireiros ilegais em terras indígenas”, disse, em maio. Em junho, Lula disse que terá “imenso prazer” em “demarcar todas as terras que precisarem ser demarcadas”.
Arroz orgânico do MST
No vídeo, o autor da publicação ainda responde ao ex-presidente Lula sobre a afirmação dele de que o Movimento Sem Terra (MST) seria o maior produtor de arroz orgânico do Brasil. “Isso é mentira, quem produz são os assentados do Incra, se eles pertencem ou não ao MST problema deles”, diz no vídeo. Lula disse a afirmação durante sabatina no Jornal Nacional, da TV Globo, no dia 25 de agosto.
De fato, a produção do arroz orgânico é de assentados do Incra que fazem parte do MST. Eles são responsáveis pela maior produção da América Latina, de acordo com dados do Instituto Riograndense do Arroz (Irga). Segundo a instituição, dos 5 mil hectares de produção de arroz orgânico previstos para a próxima safra no Brasil, quatro mil estão ligados ao MST.
Os assentamentos do Incra são um conjunto de unidades agrícolas destinadas a famílias de agricultores ou trabalhadores rurais que não têm condições econômicas de adquirir um imóvel rural. No MST, são 450 mil famílias que já conquistaram terras. Porém, de acordo com a organização, elas permanecem organizadas pois acreditam que a “conquista da terra é apenas o primeiro passo para a realização da Reforma Agrária.”
Por que investigamos
O Comprova investiga postagens virais na internet que envolvam as eleições presidenciais deste ano, a pandemia da covid-19 e a realização de obras públicas. O vídeo analisado nesta verificação traz afirmações enganosas sobre o tratamento dado por Lula a produtores rurais. Conteúdos desse tipo são danosos ao processo eleitoral, pois podem influenciar a população a votar em determinado candidato com base em informações que não procedem.
Outras checagens sobre o tema
Em 2020, o Comprova já tinha mostrado que a demarcação de terra indígena em Roraima não tinha relação com alta do preço do arroz e, este ano, o Aos Fatos apontou que não é verdade que o preço do arroz subiu por causa de demarcação de terra indígena.
Em verificações publicadas nesta semana, o Comprova mostrou que vídeo engana ao negar orçamento secreto e descontextualizar alta de preços no Brasil, que empresa de pesquisa eleitoral não funciona dentro do Instituto Lula e que Simone Tebet não deixou médica ser humilhada na CPI da Covid, ao contrário do que dizia post.