Estudo não mostra que vacina modifica genética e que causará epidemias
A pesquisa mediu o efeito da vacina da Pfizer em linhagens de células do fígado em laboratório, em condições experimentais, e não em humanos
atualizado
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Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.
Conteúdo investigado: Em um vídeo, o médico Alessandro Loiola afirma, citando um estudo, que vacinas vão causar, no futuro, “epidemia de doença cardiovascular, epidemia de doença autoimune, epidemia de câncer, e isso se daqui a uma ou duas gerações a gente não tiver uma epidemia de infertilidade junto, entre outras coisas” ao mudar o código genético das pessoas. Ele lista problemas de saúde que dizem estarem sendo causados pela vacina atualmente: trombofilia, trombocitopenia, AVC isquêmica, AVC hemorrágico, trombose arterial periférica, amputação de membros, mal cardíaco súbito e morte súbita. Afirma ainda que 99,9993% das crianças não apresentam qualquer sintoma ao pegarem Covid-19.
Onde foi publicado: Facebook e Telegram.
Conclusão do Comprova: É falso que um estudo sueco feito com a vacina da Pfizer contra a Covid-19 tenha revelado que o imunizante modifica o código genético e que isso vá causar epidemias de “doenças autoimunes, câncer e infertilidade”, como afirma médico em vídeo.
Os autores decidiram realizar uma pesquisa com células hepáticas após estudos pré-clínicos mostrarem efeitos hepáticos reversíveis em animais que receberam a injeção da Pfizer e por uma análise ter apontado que o RNA do SARS-CoV-2 pode ser transcrito reversamente e integrado no genoma das células humanas. O estudo aqui citado mede o efeito da vacina da Pfizer em linhagens de células do fígado em laboratório, em condições experimentais, e não em humanos ou qualquer outro ser vivo, o que é apontado como limitador da pesquisa pelos próprios autores. Além disso, não faz previsões a respeito de nenhuma doença.
Eles concluíram que a vacina entra nas células do fígado em meio de cultura seis horas após a administração e que surge DNA convertido a partir do RNA mensageiro em células hospedeiras, mas apontam não saber se o DNA convertido está integrado ao DNA das células, ou seja, se ele compromete o genoma. Especialistas ouvidos pelo Comprova destacam que outros estudos atestam que não há a modificação do DNA pela vacina.
Ao Comprova a Pfizer informou que, até 5 de outubro, distribuiu mais de 4,6 bilhões de doses da vacina ComiRNAty em mais de 181 países. Segundo a empresa, não há, até o momento, qualquer alerta de segurança ou preocupação, de modo que o benefício da vacinação segue se sobrepondo a qualquer risco.
O Ministério da Saúde reforçou que as vacinas passam por um rígido processo de avaliação de qualidade pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fundação Oswaldo Cruz, instituição responsável pela análise de qualidade dos imunobiológicos adquiridos e distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O vídeo aqui verificado teve 16,3 mil visualizações no Telegram. No Facebook, foram 31 mil compartilhamentos e 34 mil reações até 10 de outubro.
Como verificamos: Primeiro, localizamos e consultamos o estudo sobre o qual o médico se refere no vídeo. Em seguida, buscamos explicações dos autores da pesquisa sobre os resultados e de especialistas que pudessem comentá-los. Revisitamos também checagens anteriores do Comprova sobre a segurança da vacina da Pfizer e dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério da Saúde, além de procurarmos a própria farmacêutica e analisarmos a bula do imunizante.
Estudo não prova mudança no código genético
No vídeo verificado, o médico cita o estudo “Transcrição reversa intracelular da vacina de mRNA BNT162b2 da Pfizer BioNTech COVID-19 in vitro em linhagem de células de fígado humano”, publicado em fevereiro de 2022, por pesquisadores da Universidade de Lund, da Suécia. O médico alega que a pesquisa demonstrou que a vacina modificou a expressão genética de uma linhagem de células, surgindo um novo padrão de DNA, e que essas alterações passaram para as células-filhas. A partir disso, o médico conclui que a vacina modifica o código genético e que isso seria transmissível à geração posterior da pessoa imunizada
Os autores investigaram o efeito do imunizante mRNA BNT162b2, fabricado pela Pfizer e BioNTech, na linhagem celular do fígado humano. Para tal, células Huh7, de uma linha originalmente retirada de um tumor de fígado, foram expostas à vacina in vitro e foi feita PCR quantitativa no RNA extraído das células. A Huh7 é uma célula imortal, capaz de se dividir indefinidamente e frequentemente utilizada como modelo para investigar cânceres e hepatite C. Já a PCR é uma proteína produzida no fígado, cuja concentração se eleva quando há um processo inflamatório em curso.
No ano passado, após o estudo ter sido acessado massivamente e discutido nas redes sociais, muitas vezes mal interpretado, a Universidade de Lund publicou uma página com explicações de dois dos autores, os professores Yang de Marinis e Magnus Rasmussen.
Conforme De Marinis, o estudo mostra que a vacina entra nas células do fígado seis horas após a administração e que surge DNA convertido a partir do RNA mensageiro em células hospedeiras, mas Rasmussen destaca que estas descobertas foram observadas em placas de Petri e em condições experimentais, portanto, não se sabe se o DNA convertido está integrado ao DNA das células, o que, sim, poderia trazer alguma consequência caso se comprovasse.
Eles ressaltam, também, as limitações do estudo. De acordo com Rasmussen, as linhagens celulares são diferentes das células dos organismos vivos, portanto, é importante que investigações semelhantes sejam feitas em humanos. “É importante ter em mente que as células do fígado neste estudo são geneticamente mais instáveis do que as nossas próprias células do fígado”.
De Marinis acrescenta que não se sabe se o que foi observado nesta linhagem celular também poderia acontecer em células de outros tecidos. Por fim, eles afirmam não haver qualquer razão para alguém mudar a decisão de se vacinar com base na pesquisa e defendem a realização de mais pesquisas sobre o assunto.
Assim como os autores pontuam, Patrícia Almeida, hepatologista do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein, destaca se tratar de um estudo in vitro, ou seja, em que é utilizada uma linhagem de célula carcinogênica (retirada de um tumor) e isso foge do que acontece normalmente no corpo humano. “O hepatócito tem um ciclo de replicação completamente diferente de um ciclo de uma célula carcinogênica, que é bem mais ativa em multiplicação”, explica.
Segundo ela, o estudo demonstra que ocorre uma penetração de RNA mensageiro no tecido hepático, mas que isso já é esperado porque o fígado é quem faz a metabolização do que entra no corpo, inclusive a vacina da Covid-19. Conforme ela, a pesquisa não demonstra que ocorreu uma modificação do código genético. “É encontrado RNA mensageiro na célula, mas não é comprovada a transcrição e incorporação dessa informação genética do vírus no nosso genoma, no nosso código genético, então se o estudo não traz essa informação, quiçá afirma que isso vai passar para nossa descendência”, afirma.
A hepatologista explica que o DNA está no núcleo da célula, então para o RNA mensageiro se ligar a ele, teria que passar pela membrana nuclear e, em seguida, através de um sistema de chave e fechadura, conseguir acessar o núcleo, o que não existe na vacina. “O RNA mensageiro não tem toda a informação genética viral e, mesmo que ele entrasse, haveria necessidade de tradução dessa linguagem para DNA, para que ele fosse inoculado. Ou seja, mesmo que existisse a transcrição reversa, ainda teria que ser integrado esse material genético ao DNA, para isso é necessária outra enzima, a integrase, que também não está presente na vacina. Assim, a probabilidade do RNA mensageiro alterar o DNA do paciente é nula”, diz.
O médico Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), também ressalta que não há a possibilidade de uma vacina que usa RNA mensageiro, como a da Pfizer, alterar o DNA de uma pessoa, que fica guardado no núcleo da célula. “O número de estudos é gigantesco mostrando que não há nenhuma possibilidade de incorporação de material genético no genoma de ninguém. Não modifica a expressão genética e não interfere no longo prazo”, disse.
O Comprova já esclareceu, anteriormente, que as vacinas contra a Covid-19 não causam danos ao DNA de quem é vacinado.
Possibilidade de haver epidemias não é citada na pesquisa
Após afirmar que a vacina modifica o código genético, o médico cuja fala aqui é verificada declara aguardar pra ver “a desgraça que isso vai fazer no sistema linfocitário, no sistema macrofágico e no ‘sistema natural killer’”, referindo-se às células NK, que fazem parte do sistema imune e têm como função reconhecer o patógeno invasor e destruí-lo. Ele alega, com base do estudo sueco, que devem surgir epidemias de doença cardiovascular, doença autoimune e de câncer. Também especula que, em “uma ou duas gerações”, poderá haver uma epidemia de infertilidade.
Nenhuma dessas doenças ou previsões é citada no estudo. Renato Kfouri afirma que não há “plausibilidade biológica” na ideia de que a vacina poderia trazer algum transtorno no futuro, como os citados no vídeo, porque a proteína de RNA mensageiro da vacina se desintegra rapidamente.
Patrícia Almeida destaca que é impossível definir qualquer risco da vacina a partir do estudo apresentado, assim como seria impossível um estudo desta natureza apontar que existirão epidemias de outras doenças em decorrência do imunizante. A médica destaca que existem vários questionamentos em relação à genotoxicidade desde o surgimento das primeiras vacinas feitas de RNA mensageiro, mas que a inoculação do DNA é algo improvável cientificamente.
Efeitos colaterais graves e Covid em crianças
Os efeitos colaterais provocados pelas vacinas podem ser encontrados nas bulas dos imunizantes, que estão disponíveis no site da Anvisa.
No caso da Pfizer, as reações mais comuns (ocorrem em 10% dos pacientes) são consideradas leves, como dor e inchaço no local de injeção, cansaço, dor de cabeça, diarreia e dor muscular, dor nas articulações, calafrios e febre. Já a miocardite (infecção das fibras do coração) e a pericardite (inflamação do revestimento externo do coração), consideradas reações graves, são tidas como muito raras, ocorrendo em menos de 0,01% dos pacientes.
Procurada pelo Comprova, a Pfizer afirma que, normalmente, os casos de pericardite e miocardite ocorreram com mais frequência em homens mais jovens, após a segunda dose da vacina e em até 14 dias após a vacinação. Reações foram menos relatadas em crianças com 5 a menos de 12 anos de idade do que em adolescentes de 12 a 17 anos. Sobre o problema, a empresa declara ainda que geralmente os casos são leves e os indivíduos tendem a se recuperar dentro de um curto período de tempo, embora não informe qual, após o tratamento padrão, que pode incluir compressa fria se houver dor no local da aplicação e ingestão de analgésico em caso de febre e dores na cabeça e no corpo, além de repouso. A Pfizer solicita que após a vacinação, a pessoa deve ficar alerta para sinais de miocardite e pericardite, como falta de ar, palpitações e dores no peito, e procurar atendimento médico imediato, caso ocorram.
A empresa disponibilizou um portal para comunicação de informações relacionadas a relatos de eventos adversos para facilitar o contato com a empresa e o monitoramento de farmacovigilância.
Diferentemente do que afirma o médico, crianças podem desenvolver doenças graves associadas à Covid-19, principalmente a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P).
O Instituto Butantan ressalta que ela atinge majoritariamente crianças não vacinadas. Um estudo internacional também mostrou que crianças não vacinadas são mais propensas a desenvolver sintomas graves de Covid-19, representando 90% dos casos moderados a graves da doença entre o público pediátrico.
Pfizer diz que não há alerta de preocupação
Sobre os comentários do médico, o Comprova procurou a Pfizer para que a empresa comentasse as acusações. A Pfizer informou que não comenta estudos que não sejam de autoria dela e declarou que já distribuiu, até o dia 5 de outubro, mais de 4,6 bilhões de doses da vacina ComiRNAty em mais de 181 países. Segundo a empresa, não há, até o momento, qualquer alerta de segurança ou preocupação, de modo que o benefício da vacinação segue se sobrepondo a qualquer risco.
A empresa ressalta que agências regulatórias pelo mundo como a Federal Drug Administration (FDA), a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizaram o uso da vacina contra a Covid-19, baseadas em avaliações robustas e independentes de dados científicos sobre qualidade, segurança e eficácia, incluindo o estudo clínico da fase 3. Esse estudo procedeu com a administração da vacina a milhares de pessoas, para que fosse demonstrada a sua eficácia e segurança, ou seja, que a vacina é capaz de proteger os indivíduos com o mínimo possível de reações adversas.
A empresa também informou que dados de estudos de mundo real complementam as informações dos estudos clínicos e proporcionam evidência adicional de que a vacina fornece proteção eficaz contra formas graves da doença.
Na mesma linha, segue o Ministério da Saúde, que também considera que os benefícios do uso da vacina superam os seus possíveis riscos.
De acordo com a pasta, a probabilidade de eventos adversos graves causados pelas vacinas é muito menor do que o risco das doenças e suas complicações. O ministério salienta que, como qualquer outro medicamento, as vacinas não estão livres de provocar eventos adversos e, por isso, está atento e acompanhando todos os casos notificados como Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação ou Imunização, para rápida resposta à população.
Sobre reações oriundas da vacina, a Pfizer disse ao Comprova que realiza habitualmente o acompanhamento de relatos de potenciais eventos adversos de seus produtos, mantendo sempre informadas as autoridades, de acordo com a regulamentação vigente nos países onde é aplicada. A empresa disponibilizou um portal para comunicação de informações relacionadas a relatos de eventos adversos para facilitar o contato com a empresa e o monitoramento de farmacovigilância.
Ministério da Saúde reforça segurança das vacinas
Ao Comprova, o Ministério da Saúde informou que todas as vacinas ofertadas pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) são seguras e possuem autorização de uso pela Anvisa, após terem demonstrado eficácia e segurança favoráveis em estudos clínicos. O órgão também afirma que as vacinas passam por um rígido processo de avaliação de qualidade pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fundação Oswaldo Cruz, instituição responsável pela análise de qualidade dos imunobiológicos adquiridos e distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Sobre os possíveis efeitos colaterais provocados pela ComiRNAty, a pasta declarou que a Anvisa é o órgão responsável pelo recebimento de relatórios de segurança das vacinas. Além dela, o PNI coordena o Sistema Nacional de Vigilância (SNV) de Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação ou Imunização (ESAVI), cuja fonte de dados são as notificações de casos suspeitos que são realizadas por qualquer profissional de saúde do Brasil, por meio do sistema de informações e-SUS Notifica. Dessa forma, o PNI realiza o monitoramento da ocorrência de ESAVI de forma contínua e sistemática, permitindo a detecção de sinais de segurança e a avaliação do benefício-risco das vacinas recomendadas e em uso no país.
O Ministério da Saúde reforça que para a avaliação e investigação de ESAVI graves, raros ou inusitados foi criado um Comitê Interinstitucional de Farmacovigilância de Vacinas e outros Imunobiológicos (Cifavi) com participação da Anvisa, Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) e especialistas de diversas modalidades médicas e de saúde pública, coordenado pela pasta ministerial.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova enviou um pedido de posicionamento ao número de WhatsApp controlado pela equipe do médico Alessandro Loiola, que faz as alegações aqui verificadas, mas não teve resposta até o momento.
O que podemos aprender com esta verificação: O post verificado lança dúvidas sobre a segurança das vacinas contra a Covid-19, que são alvo frequente de desinformação. Para passar um ar de seriedade e comprovação sobre o que está dizendo, o autor cita um estudo real, mas omitindo considerações importantes dos pesquisadores sobre o assunto, além de acrescentar informações que não estão na pesquisa. As pesquisas científicas ficam disponíveis para consulta online e, como no caso aqui verificado, frequentemente são abordadas em entrevistas e reportagens de veículos profissionais de imprensa ou de instituições, como universidades, que buscam traduzir as informações para o público leigo.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Alegações semelhantes sobre o estudo sueco foram checadas no ano passado por Reuters e AP News. Anteriormente, o Comprova demonstrou que vacinas não injetam “DNA alienígena” nas pessoas, que é falso que elas causem danos irreversíveis ao DNA e que Bill Gates tenha comprado ações da Coca-Cola para inserir vacinas com mRNA na bebida.