Estudo não conclui que infecção por Covid protege mais que vacina
Ao contrário do que aponta publicação da deputada Carla Zambelli, pesquisadores não defendem a imunidade natural como estratégia
atualizado
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Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.
Conteúdo verificado: uma publicação da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) que traz recorte de dois títulos de notícias que lidos em sequência sugerem que o presidente Jair Bolsonaro (PL) acertou ao afirmar, em junho de 2021, que a infecção pelo coronavírus é “mais eficaz” na prevenção do vírus do que a vacinação. Ela usa reportagem sobre uma pesquisa nos Estados Unidos para justificar a afirmação. Na legenda, a deputada coloca “Jair Messias Bolsonaro acerta novamente!”.
SÃO ENGANOSAS as publicações feitas no Instagram, Facebook e Twitter pela deputada federal Carla Zambelli que trazem uma montagem com o título de duas notícias para sugerir que a infecção prévia pelo vírus da covid-19 traria maior proteção do que a vacina.
Enganoso para o Comprova é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Uma das matérias citadas pela deputada menciona um estudo publicado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, em janeiro deste ano. A pesquisa, feita entre maio e novembro de 2021, compara a taxa de casos de Covid entre vacinados e não vacinados.
A partir da análise de casos positivos nos estados da Califórnia e de Nova York, o estudo de fato mostra que durante um curto período as pessoas reinfectadas tiveram mais proteção que as vacinadas, mas isso não significa que a imunidade natural seja mais eficaz do que a vacinação nem que essa é uma boa estratégia.
Os responsáveis pelo estudo deixam claro que esses dados fazem parte de uma literatura científica que tenta encontrar mais informações a respeito do comportamento do vírus – que segue circulando e, portanto, se modificando. Na discussão do estudo, os pesquisadores relatam que seus dados não mostraram redução da imunidade obtida via infecção, mas mencionam que outros estudos chegaram a conclusões diferentes. Assim, afirmam que “mais estudos são necessários para estabelecer a duração da proteção contra infecção anterior por tipo de variante, gravidade e sintomatologia, inclusive para a variante Ômicron”.
Além disso, os cientistas explicam que a infecção em pessoas não vacinadas “aumenta o risco de doença grave, hospitalização, sequelas de longo prazo e morte” e concluem, ao contrário de Jair Bolsonaro, que “a vacinação é a estratégia primária e mais segura para prevenir infecções pelo SARS-CoV-2, complicações associadas e transmissões”.
Na montagem, a deputada usa o título da matéria publicada pela Istoé para dizer que Bolsonaro tinha razão sobre a tese da imunização natural. A deputada Carla Zambelli foi procurada pelo Comprova e por meio de sua assessoria reafirmou a posição de que o título da matéria resume a pesquisa.
A imunidade natural, defendida na postagem, não é recomendada por especialistas. A infectologista Ana Helena Germoglio define essa estratégia como uma “grande loteria”, porque pode trazer várias complicações para a saúde e até a morte, e diz que a vacinação é o método que produz anticorpos programados, capazes de combater uma infecção pelo coronavírus.
Para o Comprova, o conteúdo é enganoso por tirar informações do contexto original para induzir o leitor a uma interpretação diferente daquela concluída no estudo.
Como verificamos?
Para a verificação, o Comprova primeiro procurou as duas matérias citadas (Istoé) e (Poder360) nas publicações da deputada federal. A equipe também buscou pelo vídeo do presidente Jair Bolsonaro que baseia a reportagem do Poder360. No caso da Istoé, a reportagem procurou pelo conteúdo original, que é da AFP.
O segundo passo foi encontrar o estudo citado pela reportagem da AFP. A equipe consultou o site do Centers for Disease Control and Prevention (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, CDC) e localizou a pesquisa.
A reportagem também conversou com a infectologista Ana Helena Germoglio sobre a tese levantada pela publicação de que a infecção pela Covid é mais eficaz que a vacinação. Por fim, a deputada Carla Zambelli foi procurada e questionada sobre a publicação.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a Covid-19 disponíveis no dia 31 de janeiro de 2022.
Verificação
Publicação da deputada e matérias citadas
A publicação da deputada federal Carla Zambelli é uma montagem com os títulos de duas matérias. A primeira delas é um conteúdo do Poder360 publicado no dia 17 de junho de 2021 com título “Bolsonaro diz que contaminação é ‘até mais eficaz’ que a vacina contra Covid”.
A fala ocorreu durante uma live semanal do presidente no dia 17 de junho de 2021. Na ocasião, ele comentava um parecer solicitado ao Ministério da Saúde para desobrigar o uso de máscaras por pessoas que já tinham sido infectadas pelo vírus da Covid-19 ou vacinadas.
Em seguida, Bolsonaro afirma estar “vacinado” por ter se contaminado anteriormente. “Eu estou vacinado, entre as aspas. Todos que contraíram o vírus estão vacinados. Até de forma mais eficaz que a própria vacina, porque pegou o vírus para valer”, disse.
O presidente comparou a proteção derivada da infecção com a eficácia das vacinas e deu o exemplo da CoronaVac, que apresenta taxa de 50% de proteção. Segundo o chefe do Executivo, o primeiro grupo estaria mais protegido que os vacinados.
Apesar da fala de Bolsonaro questionando a eficácia da Coronavac, o imunizante tem uso aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e é usado também na imunização de crianças contra Covid-19 no Brasil. Um estudo do Instituto Butantan na cidade de Serrana, em São Paulo, mostrou que após a imunização de 75% da população adulta com essa vacina, houve queda nos casos, internações e hospitalizações pela doença.
A matéria do Poder360, citada na publicação da deputada, ouviu especialistas que rebateram a fala de Bolsonaro, tanto em relação à dispensa do uso de máscaras, quanto à tese de que a infecção é mais eficaz que a vacinação.
Os profissionais entrevistados reforçaram a necessidade da imunização combinada com medidas de prevenção, como o uso de máscaras, para conter a transmissão da Covid-19 no país.
O segundo conteúdo citado na publicação de Zambelli é uma matéria da AFP, republicada pelo site Istoé Dinheiro no dia 19 de janeiro deste ano e atualizada no dia seguinte. O título é “Imunidade natural foi mais potente que vacina durante onda da variante delta nos EUA, diz estudo”. Sem citar o nome da pesquisa ou seus responsáveis, a matéria diz que a análise tem respaldo do CDC.
O texto original da agência de notícias francesa foi publicado no dia 18 e passou por duas alterações. A versão mais atualizada é do dia 20 e incluiu no conteúdo uma limitação a respeito dos resultados do estudo e menção a outras pesquisas sobre a imunidade natural. Essa mudança não foi publicada pelo site da Istoé e não aparece na publicação de Zambelli.
O estudo
O estudo foi publicado no Relatório Semanal de Morbidade e Mortalidade (MMWR) do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. A pesquisa foi disponibilizada online no dia 19 de janeiro. O título é “COVID-19 Cases and Hospitalizations by COVID-19 Vaccination Status and Previous COVID-19 Diagnosis” — California and New York, May–November 2021(Casos e hospitalizações de COVID-19 por status de vacinação COVID-19 e diagnóstico anterior de COVID-19 — Califórnia e Nova York, maio a novembro de 2021, em livre tradução).
O estudo foi elaborado com dados sobre a Covid coletados entre 30 de maio e 30 de novembro de 2021 na Califórnia e em Nova York. Os dois estados foram escolhidos por concentrarem percentuais elevados de mortes pela doença. A pesquisa analisou casos apenas em maiores de 18 anos e dividiu as pessoas em quatro grupos:
1) Não foram vacinados e não tiveram Covid-19
2) Vacinados e que nunca pegaram Covid-19
3) Não vacinados e que tiveram Covid-19
4) Vacinados e que tiveram Covid-19
Os pesquisadores afirmam que, durante o período do estudo, a incidência de Covid-19 em ambos os estados foi maior entre pessoas não vacinadas e sem diagnóstico prévio (grupo 1) em comparação aos outros três grupos.
Na primeira semana de maio, a taxa de casos de Covid foi 19,9 vezes menor na Califórnia e 18,4 vezes, também inferior, em Nova York entre o grupo 2 (vacinados que nunca pegaram Covid) em comparação ao grupo 1 (não se vacinaram e não tiveram a doença).
Esse cenário também foi verificado na comparação do grupo 1 com o 3 e o 4 na taxa de casos e também nas hospitalizações. Essa situação se manteve até a variante delta se tornar a predominante no país no final de junho e início de julho do ano passado.
Em outubro, em comparação com pessoas do grupo 1, as taxas de casos de Covid entre pessoas vacinadas e sem diagnóstico (grupo 2) anterior foram 6,2 vezes (Califórnia) e 4,5 vezes (Nova York) menores.
As taxas também foram substancialmente mais baixas entre os dois grupos com diagnósticos anteriores de Covid-19 em relação ao grupo 1, incluindo 29,0 vezes (Califórnia) e 14,7 vezes menores (Nova York).
Durante o mesmo período, em comparação com as taxas de hospitalização entre pessoas não vacinadas sem diagnóstico prévio, as taxas de hospitalização na Califórnia seguiram um padrão semelhante.
Para os pesquisadores, esses resultados demonstram que a vacinação protege contra a infecção e hospitalizações e que contrair o vírus também diminui a chance de reinfecção.
Limitações do estudo
Os pesquisadores fazem ressalvas importantes sobre os dados apresentados no estudo. A primeira é de que a análise foi feita antes do surgimento da ômicron, por isso os resultados não podem ser aplicados à situação atual.
Além disso, a pesquisa foi concluída antes da aplicação das doses de reforço na maior parte das pessoas, então não reflete o benefício imunológico dessas doses.
Outro apontamento é que a análise não levou em conta o tempo de aplicação da vacina, mas apenas o período do diagnóstico anterior.
Há ainda falta de clareza sobre a não infecção de pessoas que não tiveram diagnóstico para Covid. Isso porque os dados coletados da Califórnia e de Nova York não levam em conta todos os tipos de testagens — os número de teste de antígeno foram apenas levantados de Nova York e não há informações sobre os positivados que fizeram somente o autoteste.
Outro ponto de destaque é que o estudo exclui do cálculo pessoas que morreram e que, em sua maioria, segundo os pesquisadores, era de não vacinados.
Imunidade e vacinação
De acordo com o estudo, os dados sugerem que a vacinação protege contra a Covid-19 e a hospitalização decorrente da doença, e que sobreviver a uma infecção anterior protege contra uma reinfecção.
Os pesquisadores ressaltam que a proteção derivada da infecção passou a ser maior depois que a variante delta tornou-se predominante, o que coincidiu com o declínio precoce da imunidade induzida pela vacina em muitas pessoas.
Reforçam ainda que a vacinação continua sendo a estratégia mais segura para prevenir infecções e transmissão do vírus, assim como as complicações associadas.
“A vacinação primária contra Covid-19, doses adicionais e doses de reforço são recomendadas pelo Comitê Consultivo de Práticas de Imunização do CDC para garantir que todas as pessoas elegíveis estejam em dia com a vacinação Covid-19, que fornece a proteção mais robusta contra infecção inicial, doença grave, hospitalização, sequelas a longo prazo e morte.”
A infectologista Ana Helena Germoglio explica que a imunidade natural nunca foi uma recomendação defendida pelos especialistas.
“Na verdade, se deixar ser infectado por um vírus que pode ter vários desfechos, se você não estiver completamente imunizado, é uma grande loteria”, diz.
Germoglio esclarece que, ao contrário da tese defendida pela postagem, a imunização natural não garante proteção maior que a vacina. Os imunizantes, explica, estimulam a produção do que ela classifica como anticorpos neutralizantes, que são diferentes do que a infecção pela doença vai ser capaz de gerar.
“[Os anticorpos neutralizantes] são aqueles que realmente defendem a pessoa contra a doença. Por isso que é importante a vacina, mas essa estratégia de imunização natural, não”, comenta.
O que diz a deputada
Procurada pela equipe do Comprova, a deputada Carla Zambelli, por meio de sua assessoria, reafirmou o que foi dito na postagem. “Para nós, portanto, os cientistas que fizeram o estudo e afirmaram exatamente o que está no título da matéria da Istoé, também acertaram”, escreveram.
A equipe disse ter lido o estudo e que as ressalvas feitas pelos pesquisadores não foram publicadas “porque não se trata de uma matéria jornalística ou científica, mas de lembrar uma opinião que julgamos acertada”.
Por que investigamos?
O Comprova investiga conteúdos suspeitos que tenham relação com a pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições. O foco são publicações virais que têm grande alcance nas redes sociais e podem causar desinformação.
No caso da postagem da deputada Zambelli, o conteúdo recebeu 19 mil curtidas e 4 mil compartilhamentos no Facebook e Twitter. A informação de um estudo foi usada de forma enganosa para endossar uma fala do presidente Jair Bolsonaro que disse que a imunidade adquirida pela contaminação pelo coronavírus é mais eficaz que a vacinação. Além da pesquisa não chegar a essa conclusão, as vacinas contra a Covid são consideradas efetivas por autoridades sanitárias no controle do vírus.
O Comprova já mostrou em verificações anteriores que as vacinas contra a Covid-19 são seguras e desmentiu outra publicação da deputada Zambeli que enganou ao associar a morte por miocardite de um jogador à vacinação contra a Covid.