Déficit das contas públicas: vídeo engana ao comparar dados diferentes
É enganosa a comparação feita em vídeo sobre as contas públicas do último ano do governo de Bolsonaro e do mês de maio do governo Lula
atualizado
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Conteúdo investigado: Vídeo em que uma mulher sugere que o Brasil caminha para “virar a Argentina” e/ou “virar a Venezuela”. A afirmação parte da comparação feita entre superávits e déficits entre os governos de Lula e Bolsonaro, além de outros fatores econômicos, como a queda do Ibovespa.
Onde foi publicado: TikTok e Telegram.
Conclusão do Comprova: É enganoso vídeo que compara o superávit nas contas públicas durante o último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL) com o déficit registrado pela gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em maio de 2023.
Na gravação, uma mulher afirma que “no governo Bolsonaro foram deixados 50 bilhões de superávit”, mas atualmente, “apenas sete meses do governo Lula já está batendo 50 bilhões de déficit”. A autora do post utiliza duas reportagens, do G1 e da CNN, para ilustrar as alegações.
A comparação, no entanto, utiliza bases de dados diferentes. Conforme explicou ao Comprova o economista José Pio Martins, os números da gestão Bolsonaro referem-se ao balanço das contas do governo federal realizado no final de 2022 e divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Enquanto os dados do governo petista dizem respeito às contas do setor público consolidado (União, estados, municípios e estatais), que fazem parte das estatísticas fiscais divulgadas pelo Banco Central do Brasil (BCB) mensalmente.
A diferença entre os números divulgados pelo BCB e pela Secretaria se deve ao fato de que os órgãos utilizam metodologias distintas e enquanto o primeiro considera as contas do setor público consolidado, o segundo leva em conta apenas a arrecadação da União.
“Às vezes você pega o déficit nacional ou superávit nacional e o mérito, na verdade, é das prefeituras, não dos estados ou do governo federal. E o inverso também acontece”, diz Martins.
O Comprova classifica como enganoso todo conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 31 de agosto, o vídeo somava 7,3 mil visualizações no Telegram. Já no TikTok, a publicação alcançava 805,3 mil visualizações, 90,8 mil curtidas, além de 23,8 mil compartilhamentos e 3,1 mil comentários.
Como verificamos: Primeiramente, utilizamos o Transkriptor para transcrever o áudio do vídeo aqui verificado. Depois, pesquisamos no Google as manchetes das matérias exibidas na gravação (UOL, G1 e CNN) para entender o contexto e o conteúdo das afirmações. Também entrevistamos o economista, palestrante, consultor de economia, finanças e investimentos, e ex-reitor da Universidade Positivo (UP), no Paraná, José Pio Martins.
Por último, procuramos o Ministério da Fazenda, a Secretaria do Tesouro Nacional, o Banco Central e o responsável pela publicação do conteúdo.
O superávit no fim de 2022, no governo Bolsonaro
De acordo com notícia do G1 de 27 de janeiro de 2023, mostrada no vídeo investigado, as contas do governo federal registraram superávit primário de R$ 54,1 bilhões em 2022. Isso significa que as receitas do governo superaram as despesas, sem considerar o pagamento de juros da dívida pública. Os dados, que incluem contas do Tesouro Nacional, da Previdência e do Banco Central, são do boletim do Tesouro Nacional.
Conforme o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, há dois motivos que explicam o superávit em 2022: os precatórios e o incremento dos “restos a pagar”. “Há mais de R$ 50 bilhões acumulados de precatórios não pagos”, afirmou Ceron à Folha, referindo-se aos efeitos da emenda constitucional que permitiu à União adiar o pagamento de dívidas judiciais. Sobre os restos a pagar, nome técnico de despesas herdadas de anos anteriores, Ceron disse que a herança ficou maior no fim do governo Bolsonaro.
Ainda segundo reportagem da Folha, o estoque de restos a pagar é de R$ 255,2 bilhões, valor explicado pelo excesso de despesas que começaram a ser executadas já próximo do fim do exercício, sem que houvesse tempo hábil para seu pagamento.
Já os dados do Banco Central do Brasil de janeiro de 2023 mostram que as contas públicas registraram, em 2022, saldo positivo de R$ 126 bilhões. O número do BCB difere do divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional porque, além de considerar as contas da União, dos governos regionais (estados e municípios) e empresas estatais, o banco utiliza uma metodologia diferente, que leva em conta a variação da dívida dos entes públicos.
Quando se incorporam os juros da dívida pública à conta – no conceito conhecido no mercado econômico como “resultado nominal” – nota-se déficit de R$ 460,4 bilhões nas contas do setor público em 2022.
O déficit em maio de 2023, no governo Lula
Conforme matéria da CNN de 30 de junho de 2023 mostrada no vídeo investigado, as contas públicas registraram déficit primário de R$ 50,2 bilhões em maio. Os dados, que englobam as contas do governo federal, estados e municípios e empresas estatais — exceto Petrobras, Eletrobras e bancos —, fazem parte das estatísticas fiscais, divulgadas pelo Banco Central. Em maio de 2022, houve déficit primário de R$ 32,9 bilhões.
O déficit primário representa o resultado negativo das contas do setor público (despesas menos receitas), desconsiderando o pagamento dos juros da dívida pública. Segundo reportagem da Agência Brasil, o saldo negativo resultou sobretudo da queda na arrecadação dos governos estaduais e municipais. Eles foram responsáveis pela piora do resultado primário em R$ 14,1 bilhões.
Somando os juros, os gastos de maio de 2023 ficaram em R$ 69 bilhões, contra R$ 32,9 bilhões de maio de 2022.
Em 29 de junho, o Tesouro Nacional informou que o governo central — composto por Tesouro Nacional, Banco Central e Previdência Social — registrou déficit primário de R$ 45 bilhões em maio de 2023. O BCB apresenta números diferentes pois considera os governos locais e as estatais, e usa outra metodologia, que leva em conta a variação da dívida dos entes públicos.
Dados entre os dois governos não são comparáveis
Ao Comprova, o economista José Pio Martins explicou que a comparação feita no vídeo é indevida pois se utiliza de duas variáveis diferentes. Em relação ao governo Bolsonaro, os dados referem-se às contas do governo federal (apenas União) em um ano (2022), enquanto os números da gestão Lula correspondem às contas do setor público consolidado (União, estados, municípios e estatais) em um mês (maio de 2023).
“Só faz sentido analisar o desempenho de um governo em termos de déficit público quando você fecha o ano. Porque tudo tem uma base anual e a economia é muito diferente de um mês para outro. Por exemplo, em agosto e setembro é hora de plantar um amontoado de safras agrícolas. Mas isso é colhido apenas no ano seguinte. Então os custos de todo esse setor produtivo entram neste ano, mas a receita entra no ano seguinte porque a colheita é feita depois”, afirma.
Martins explica que seria possível comparar um mês de 2022, durante o governo Bolsonaro, com o mesmo de 2023, na gestão Lula. Mas, na visão do especialista, essa análise ainda seria incompleta. “O ideal é comparar o ano inteiro de um e o ano inteiro de outro. Mas Lula não fechou um ano de governo, ou um período orçamentário.”
Além disso, o superávit relativo ao último ano do governo Bolsonaro considera os valores arrecadados apenas pela União, enquanto o déficit de maio de 2023 leva em conta as contas tanto do governo federal quanto de estados, municípios e empresas estatais.
“Volta e meia alguém fala em déficit do governo federal, mas o número utilizado é do déficit do setor público, que inclui prefeituras e estados. Às vezes você pega o déficit nacional ou superávit nacional e o mérito, na verdade, é das prefeituras, não dos estados ou do governo federal. E o inverso também acontece.”
O economista ressalta ainda que é preciso levar em conta outros fatores no momento de realizar comparações na área econômica, como a inflação, e influências externas, como, por exemplo, o preço médio do barril de petróleo.
Outras alegações
No vídeo, a autora alega que “o diesel já está acabando em diversas partes do Brasil, o que pode levar a uma crise gigantesca”. No entanto, o Comprova mostrou, em 18 de agosto deste ano, que não havia registro de desabastecimento de diesel no país.
Na época, a Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis) afirmou que houve limitação nas entregas em algumas bases de distribuição, mas que isso não significa falta de combustíveis para os consumidores. Um dos motivos teria sido a competitividade de preço entre empresas, “ocasionando sobrecarga de pedidos em determinadas bases em detrimento a outras e, consequentemente, restrição nas entregas de produtos pelas distribuidoras”. A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) também negou haver desabastecimento.
A autora também fala sobre os impostos para compras de sites internacionais como Shein e Shopee, a política de preços da Petrobras e afirma que o governo estaria “tirando dinheiro da Saúde e da Educação para ficar subsidiando gasolina e seus artistas”. A última alegação é acompanhada de notícia da Folha intitulada “Ludmilla pede ‘L’ de Lula em show da Virada Cultural com cores do PT no telão”.
Sobre esses assuntos, o Comprova já mostrou que imposto para taxar compras em sites internacionais como Shein e Shopee existe desde 1999; explicou como funciona a política de preços da Petrobras e checou que artistas como Ludmilla e Zeca Pagodinho não receberam milhões de reais pela Lei Rouanet.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova procurou o perfil @garotacrypto, por e-mail, e questionou o método de comparação utilizado por ela nas afirmações da publicação.
A autora do vídeo não respondeu sobre os métodos utilizados para comparação, mas afirmou que todas as informações apresentadas no vídeo estão acompanhadas de matérias jornalísticas e que é possível comprovar cada tema, se pesquisado individualmente, por links vinculados ao próprio governo.
Com relação ao diesel, a autora afirmou que a “federação de postos confirmou a restrição na oferta do diesel em 22 dos 26 estados brasileiros”.
O que podemos aprender com esta verificação: É comum que desinformadores utilizem manchetes de notícias para tentar dar credibilidade ao conteúdo compartilhado. No caso do vídeo investigado nesta checagem, há diversas informações, mas elas não são detalhadas ou contextualizadas.
Ao se deparar com conteúdos assim, desconfie. É importante sempre procurar o contexto completo das informações apresentadas. Isso pode ser feito consultando sites de órgãos oficiais ou veículos de comunicação de sua confiança.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Em 2019, a Agência Lupa checou ser falso que orçamento do governo saiu do vermelho pela primeira vez em 20 anos e que Bolsonaro tenha tirado contas públicas ‘do vermelho’.
Recentemente, o Comprova mostrou que a comparação entre PIB e número de senadores não é suficiente para entender a distribuição de recursos federais e que decreto com contingenciamento de recursos federais não determina corte de verbas. O projeto ainda explicou o que é o Real Digital e como irá funcionar a versão eletrônica da moeda brasileira.
Esta checagem foi realizada por jornalistas que integram o Projeto Comprova, criado para combater a desinformação, do qual o Metrópoles faz parte. Leia mais sobre essa parceria aqui.