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Steak Bull serve bom rodízio, mas vamos repensar este modelo?

Por que não utilizar o boi inteiro? Tem uma questão ética e ambiental nesse debate

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Shoulder Steak
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Além de Seleção Canarinho e depilação brasileira, a churrascaria rodízio completa o rol de projetos nacionais a encherem os olhos estrangeiros. Estive por anos sem comer em restaurantes desse gênero por aqui, onde nada é mais trivial, pois entendo que representa um problema complexo e esbarra em parâmetros éticos e estéticos – no tocante ao aproveitamento do animal por completo, a glutonaria e a dificuldade de gestão de tempo para se alimentar com tranquilidade.

Voltei recentemente ao rodízio. Desta vez, para avaliar a Steak Bull, casa que ocupa há quase dois anos o ponto deixado pelo falido Porcão, no Setor de Clubes Esportivos Sul, ao lado do Pier 21. Optei, contudo, por não endereçar uma crítica específica à minha experiência neste restaurante, embora o faça em certa medida, mas a trazer uma reflexão acerca do rodízio.

Ali se faz um ótimo churrasco, adianto logo, antes de explorar a engrenagem por trás a me deixar tão desconfortável. A Steak Bull surge para recuperar uma qualidade perdida no serviço de carne no espeto em Brasília. Conheço bem o segmento. Da Fogo do Galpão, na Ceilândia, às decadentes Espeto de Ouro, no Setor Hoteleiro Norte, e Pampas (outrora apenas Pampa), no SIG e ao lado do ParkShopping, passando pela vizinha Potência do Sul e a Buffalo Bio. Por força deste escrito, visitei a Potência Grill, na Vila Planalto, única que não conhecia.

Há, de todas essas, apenas duas dignas de nota, por manterem um padrão elevado de qualidade de carnes, com guarnições e um bufê razoavelmente bem cuidados: a Steak Bull e a rede brasileira-ianque Fogo de Chão. Não supõe qualquer coincidência o fato de serem as duas mais caras, R$ 99 e R$ 144 por pessoa – minha opção pela Steak Bull, aliás, é porque não deve quase nada à Fogo de Chão, a não ser pelas saladas e antepastos, a um preço bem mais acessível. O custo alto reflete na qualidade do gado ali servido, na maior parte angus de procedência uruguaia ou do nobre cruzamento de angus com nelore (nacional).

Deste último gado é retirado o shoulder steak, a picanha da vez no rodízio. Afinal, este modelo também se abre para os modismos. Há um par de décadas era a chuleta, depois apareceram os cortes argentinos (ancho e chorizo) e agora só se fala em shoulder, que nada mais é do que a parte mais carnuda da paleta. Outrora carne “de segunda”, tornou-se uma das mais requisitadas do salão.

Em minha última visita à Fogo de Chão, pude confirmar um trabalho bem profissional da equipe, assadores exímios e churrasqueiros com boas habilidades de manejo das facas. Na Steak Bull não é diferente. É necessária muita precisão para se fatiar uma paleta de cordeiro, por exemplo, e evitar a ossada e os nervos, mantendo a tenra suculência do corte.

Por mais que se esforce para manter um nível alto de qualidade, o churrasco na Steak Bull não escapa do paradoxal sistema, a burlar as mais básicas regras de etiqueta à mesa (não que me importe tanto assim com isso), apinhar os pratos de comida e apressar a deglutição.

Tudo começa com a sinalização do trânsito dos garçons. O sinal verde à mesa não resolve o problema de códigos de comunicação. Cliente e churrasqueiro sucumbem às tentações: pedir ou oferecer a carne mesmo com o sinal vermelho ao lado da louça. No ziguezaguear dessa dança, acaba que todo mundo se entende. Mas cai por terra qualquer pretensa finesse que os suntuosos templos de carne tentem ostentar em arquitetura.

A satisfação no rodízio é relativa e compõe todo aparato dessa banalização da carne que me leva a questionar se já não era tempo de se repensar este modelo. Ora, se nos últimos anos percebemos um crescimento exponencial das parrillas, não seria este um sinal de que o consumo da carne no restaurante deveria ser um pouco mais inteligente e moderado?

Naturalmente, há um mínimo esforço para se evitar (ou conter) o desperdício. Desde a ameaça imposta sutilmente ao cliente de se pagar pela comida deixada no prato (raramente ocorre e nem é todo restaurante leva a cabo esta prerrogativa) à recauchutagem dos temperos e processos para se aproveitar até às últimas fibras musculares. Entra aí a famosa picanha ao alho, o arroz de costela etc. Agradecemos às pessoas de mau gosto, dedicadas a pinçar do espeto fatias ressecadas em tom de carvão, evitando o lixo como destino final.

O churrasco é hoje a base da alimentação fora do lar em Brasília, vide a quantidade de self-services com uma estação de espetos ao final do bufê. De um par de meses para cá me impressiona o movimento da banca da 404 Norte. Saíram as revistas e jornais, entrou o PF… com churrasco. A quadra fica entupida na hora do almoço. Dez contos no prato com uma linguiça ou uma costelinha na brasa? Como resistir?

Chegou a hora de se colocar a alimentação em perspectiva, como princípio básico para se pensar a gastronomia, o comércio. Tudo bem que estamos falando de hábitos encravados nas nossas rotinas, difíceis de se mudar. Perturba-me que a Steak Bull consiga servir um maravilhoso e bem assado shoulder, uma costela premium (contrafilé com osso ou pimerib) indefectível, crocante de tão bem selada na brasa, embora um tico mais salgada do que o ideal, mas que ignore o bicho todo.

Das churrascarias de grande porte às mais modestas, todas estão reféns do nosso péssimo hábito de achar que boi é só picanha, costela e fraldinha, eventualmente conferindo espaço para a alcatra e a maminha.

Neste sentido, a influência das parrillas e mesmo das steakhouses americanas parecem-me um tanto positiva. Da oferta dos menus, cria-se novas demandas, para exploração de novos cortes. Hoje encontra-se circulando no rodízio assado de tira, por exemplo. Mas o segmento não conseguiu decifrar o boi por inteiro. Onde está o peito? O acém? O bucho? O mocotó?

Dividimos o segmento entre as partes do boi dignas das feiras e as dignas dos salões luxuosos onde paga-se mais de dois dígitos por pessoa para uma refeição simples (afinal, bebidas e sobremesas são compradas à parte).

O modelo do churrasco rodízio se firmou no imaginário estrangeiro. Agora precisamos corresponder às expectativas do olhar alheio e higienizar o aparato visual da comida servida. No mundo dominado pela estética do polido, como exemplificaria o filósofo Byung-Chul Han problematizando a depilação feminina brasileira, importa mais parecer do que ser de fato.

Muitas vezes somos nós mesmos os gringos, que precisamos ver nossos regionalismos em embalagens de luxo. Fogo de Chão não faz churrasco na terra como no costume gaúcho de onde surgiu ou como seu emblema sugere; e a Steak Bull vive, como todas as demais, de mimetizar os nossos traços terceiro-mundistas para o signo de um cosmopolitismo artificial.

Deste modo, agrega o infame balcão de sushis, apresenta antepastos italianos (com endívias e embutidos importados), ao passo em que oferece outros pratos do receituário nacional que em nada têm a ver com churrasco, como a moqueca de peixe, que não tem gosto de absolutamente nada. Isso tudo servirá para o falseamento da experiência de se conhece a cozinha brasileira. É isso que exportamos, é esta imagem que lapidamos.

Como costumo dizer, o Brasil é o país da fartura e da “faltura”. Participamos juntos de desta hipocrisia, como se tivéssemos colocado Ilha das Flores em looping, a ponto de normalizar o fomento à glutonaria e do consumo desenfreado na medida do avanço da miséria.

Steak Bull
No Setor de Clubes Esportivos Sul, Trecho 2, ao lado do Pier 21. Tel: (61): 3226-8818. Diariamente, das 11h à 1h. Ambiente interno. Wi-fi. Estacionamento. Desde 2016

 

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