Leo Hamu celebra cultura caipira com ótimo pão com linguiça
O preparo do idealizador do Lagash pode ser conferido na Ceasa ou na NutriBakery
atualizado
Compartilhar notícia
Não há nada como um bom pão com linguiça. Talvez a primeira receita que “criei” na vida tenha sido essa. Combinar o pão francês com o embutido traduz um dos impulsos mais espontâneos da elaboração de um prato – tal como toda sorte de sanduíches típicos de padaria, misto, bauru, prego… Fazemos essa combinação de modo natural no churrasco de fim de semana (molhando com um pouquinho de vinagrete) ou catamos um desses lanches nas paradas no meio da estrada por alguns trocados. Há quem reivindique para si a criação deste prato. Ao menos de algumas das milhares de formas para fazê-lo – do bratwurst alemão ao cachorro-quente americano e o choripán argentino.
Certamente não fora Leo Hamu a inventá-lo. Há três anos servindo o seu pão com linguiça na feira do Ceasa, o produtor rural, engenheiro e zootecnicista goiano de ascendência sírio-libanesa, aliás, atribui aos seus antepassados uma das narrativas da origem dessa receita. Desde os tempos do Império Otomano, árabes preparam suas caftas em pão sírio. No entanto, também vem de uma tradição milenar a produção de embutidos – o que faz da origem do pão com linguiça quase impossível de se rastrear.
Mas o que há de tão especial na versão do clássico sanduíche pelas mãos de Leo Hamu? Pão com linguiça tem em tudo quanto é feira e em várias barraquinhas espalhadas do Distrito Federal. Como não mencionar, por exemplo, o pão com linguiça (pode ser no pão de queijo) do Churrasquinho Mineiro, na Feira de Vicente Pires?
Com a irmã Fátima e a matriarca da família, Hamu criou em 1986 o Lagash, um dos mais clássicos restaurantes árabes de Brasília, que encerrou as atividades em 2015. Fátima reconfigurou a casa para torná-la uma rotisseria, também na Asa Norte. Deste repertório, Leo se deteve a criar uma grife própria de molhos e antepastos.
Berinjela de todo jeito. A versão com alho mais nozes me parece a mais saborosa, pelas camadas de textura, graças à crocância da castanha e a picância do legume. A berinjela defumada naturalmente é bem saborosa, não chega (nem se pretende a ser) uma babaganush. De início, a verdura assada em azeite me pareceu agradável, mas falta um pouco de sal e o amargor típico da casca se impõe. Dentre as melhores opções, há uma azeitona picada e conservada em azeite com temperos sírios (R$ 25 cada pote pequeno). Como um bom agricultor, as ervas são cultivadas por ele próprio.
Para além dos sabores árabes, Hamu apresenta na banquinha muito mais de sua bagagem caipira. Criador de suínos por muito tempo, Leo sempre arruma tempo no atendimento à clientela para um dedo de prosa. Narra as peripécias de seus avós cruzando toda a antiga região da Paulistânia até de volta a Formosa (GO) para venda de equipamentos em troca de ouro e gado.
Na banca, vende o bacon que prepara e embala à vácuo, mais a carne de lata e a linguiça, ambas conservadas em banha de porco – do jeito antigo. Para o embutido, ele combina toucinho, copa lombo e fraldinha suína. Como resultado, vem uma linguiça com pouquíssimo líquido, bem carnuda, temperada na medida correta. Devido ao processo artesanal, temos aqui um sabor livre de realçadores de sabor umami. Ingredientes de qualidade e técnica apurada não exigem truques da indústria alimentícia.
Voltando à pergunta lá de cima. O que faz deste um ótimo pão com linguiça? Comecemos pelo pão francês (num formato mais comprido, como se uma minibaguete), encomendado da tradicionalíssima Casa do Pão. Acertar no fornecedor deve ser um dos méritos de qualquer cozinheiro à frente de uma banca de comida.
O pão é aberto, deitado sobre a chapa elétrica untada pela banha de porco e, logo depois, recebe duas camadas de molho: de pimenta chipotle e a grande sacada de inspiração germânica que é sua mostarda com pedaços de maçã verde. Em seguida é disposta a linguiça aberta no meio para então ser finalizada com um saboroso, bem reduzido e intenso ragu da própria linguiça. Assemelha-se ao chili dos hot-dogs americanos. Desembolsamos R$ 10.
Mas a opção mais concorrida na banca leva ainda um queijo da Serra da Canastra ralado e logo maçaricado (o preço sobe para R$ 15). O leitor a esta altura já deve conhecer minha birra com o maçarico. Funciona muito bem para queimar o açúcar e nem um pouco para sushis. Queijos, no entanto, frequentemente ainda conseguem manter personalidade com o chamuscado com cheiro de gás. Dispenso.
Minha versão favorita não leva queijo, mas chamo pessoalmente de “meio a meio”. Significa que a linguiça ocupa apenas metade da extensão do pão, deixando espaço para a suculenta carne de lata também conservada na banha. Pode-se pedir ainda com bacon. Contudo, não sou desses que considera tanto assim o toucinho defumado a ponto de “melhorar qualquer receita”. Às vezes atrapalha.
Agora Leo está em dois endereços: aos sábados pela manhã no Ceasa; e às quintas e sextas, a partir das 17h, na NutriBakery (406 Sul). A curiosa parceria com a padaria especializada em produtos sem glúten ou lactose (recomendadíssima a celíacos) nasceu neste ano. Mas na calçada da Asa Sul Leo faz seu sanduíche não mais com o pão francês, mas com uma minibaguete à base de polvilho (a R$ 15 ou R$ 20 com queijo, incluindo a versão sem lactose).
Podemos considerar que Leo tenha gourmetizado o pão com linguiça. Mas o fez sem a empáfia marqueteira. Por trás, percebe-se muito mais o equilíbrio entre a acidez da mostarda, a pimenta a textura da carne e a suculência do ragu combinados dentro de um pão fresco. Comida de excelência não requer sousplat, talheres ou mesmo uma cadeira para sentar. Rigor técnico e sabor dão conta da mágica.
Leo Hamu
Na Feira do Ceasa (SIA, Trecho 10). (61) 99966-9156. Sábado, das 6h às 12h30. Na NutriBakery (406 Sul, bloco D, loja 33). (61) 3542-6013. Quinta e sexta, das 17h às 21h