Dom Francisco traduz o espírito da gastronomia de Brasília
O “restô” comandando por Francisco Ansiliero segue como uma tradição da cidade
atualizado
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Há uma gastronomia brasiliense? A pergunta exige uma busca complexa para uma resposta certamente subjetiva. Afinal, as fronteiras estaduais não definem uma região. E cada comunidade aos poucos cunha hábitos próprios e peculiaridades. Vide o caso do pirão de peixe: em Pernambuco, a receita tem aspecto mais cremoso, molhado, do que em Sergipe, onde leva mais farinha.
Brasília se traduz como uma congregação dessas influências – sobretudo, de estados do Nordeste e do Sudeste –, além de estar inserida no contexto goiano-cerratense. Desse modo, não há um restaurante que mimetiza toda essa gama de influências regionais e internacionais para a formação do espírito de uma possível gastronomia brasiliense melhor do que o Dom Francisco da Asbac.
A casa do chef catarinense de ascendência italiana Francisco Ansiliero é uma das poucas clássicas a subsistir no complexo e penoso mercado da alimentação fora do lar. São três décadas de atividade, com um dos trabalhos mais consistentes da cidade e a manutenção de ícones culinários nacionais, de norte a sul do país.
Picanha, o corte mais característico do churrasco nacional, ilustra o que há de melhor no cardápio de Francisco. Carne de gado de Bonsmara de bom marmoreio, grelhada em brasa, com uma bela capa de gordura “renderizada” e respeitando o ponto correto, bem descansado. Sai por R$ 168 para duas pessoas, com a famosa farofa de ovos de guarnição.
Copiada das mais diversas formas por um bocado de restaurantes, a farofa de ovos pode assustar quem espera uma receita mais granulada. Grandes nacos de ovos fritos em manteiga com cebola mais cebolinha e pouquíssima farinha Amélia amarela para a proporção considerada ideal.Esse acompanhamento, aliás, é como um patrimônio da gastronomia brasiliense em plena formação. Digo isso porque hoje mesmo (5 de maio), a turma do Panela Candanga, do qual Francisco faz parte, lança o site www.panelacandanga.com.br, iniciativa que contribui para a construção da identidade regional.
Do outro lado da mesa de sabores de Francisco Ansiliero, há massas italianas (nada muito interessante a se notar) e os pratos de bacalhau, a outra grande especialidade da casa.
Encontrei várias inconsistências ao longo dos anos de sua bacalhoada tradicional: problemas de dessalgação, muita água, verduras cozidas demais – embora preservasse sempre a qualidade do ingrediente nas lâminas de um autêntico Gadus morhua. Mas ainda mantém um ótimo nas natas.
Para experimentar o peixe em seu melhor estado, opto pelo lombo na brasa (R$ 239, para dois), com o também famoso arroz com brócolis do chefão. Irreparável. O preço é muito salgado, contudo o prato tem tempero na medida.
Aliás, a linha de grelhados do restaurante não deve nada às novas parrillarias que pipocam pela cidade. Ótimas carnes, com um destaque especial a um dos meus pratos favoritos de Francisco: o prime rib suíno (R$ 60).
À revelia do padrão brasiliense de influência nordestino-mineira, Francisco explora os sabores capixabas nas saborosíssimas moquecas tradicionais (a de robalo com camarão mais arroz, pirão e moqueca de banana é de lamber os beiços, por R$ 139 e serve dois).
Faceta nortista
O receituário do Norte, é válido observar, compõe o imaginário do exótico para o paladar migrante das primeiras décadas de Brasília. Comercialmente, encontrava-se pratos típicos da região em feiras e eventos específicos. Ainda hoje, há pouquíssimos restaurantes dedicados a executar essa culinária.
Nesse sentido, Francisco foi um precursor. Toda a glória de um pirarucu de casaca, do tucupi e do jambu aparecem no cardápio de diversos sotaques brasileiros e internacionais. O chef contribuiu para a popularização do tambaqui, peixe de ocorrência também nos rios do Planalto Central.
Claro que faço ressalvas ao pirarucu (R$ 178, para dois, com arroz de companhia). A receita me parece um pouco ressecada. O pato no tucupi (R$ 88), servido apenas às sextas, consegue acertar muito bem a acidez, com uma boa porção de jambu e uma carne absolutamente tenra. Da última vez, contudo, o molho levou muito sal.
Uma refeição no Dom Francisco não costuma atiçar meus dentes doces. De sobremesa? Talvez o bolo de castanha-do-brasil (Francisco recusa o título “do-pará”, originalmente atribuído à semente por nós, embora internacionalmente chame-se Brazil nut). De textura úmida, leitosa, semelhante a um pastel tres leches mexicano, o bolo tem sabor pronunciado da castanha e dulçor equilibrado (R$ 24). O sorvete de má qualidade atrapalha.
De resto, a confeitaria do Dom Francisco não se sai muito bem. Um petit gâteau malfeito, pudim de textura um tanto esponjosa (outrora, comi alguns corretos) e uma musse de chocolate assustadora: densa, doce, mais parecia um brigadeiro de colher em textura com retrogosto do ovo.
Mas Francisco não se resume a apenas um restaurateur e chef de cozinha da velha-guarda. Sua tarefa, conscientemente, passa por um processo educativo de seu público. A começar pelo seu relacionamento com os produtores. Ora, Ansiliero foi quem convenceu os comerciantes do Ceasa – onde bate ponto bem cedinho pela manhã, até hoje – a venderem ervas frescas em maços menores para estimular o consumo pessoal e não apenas saciar a demanda do atacado.
O restaurante tornou-se um grupo empresarial e multiplicou-se para o serviço de bufê. No ParkShopping e na franquia no Pátio Brasil (com o mesmo modelo, porém sob outra administração), serve-se da oferta no aparador a um preço fixo. De outro lado, a filha de Francisco, Giuliana Ansiliero, toca o cardápio com mais fidelidade ao do pai, embora com um toque mais moderninho, na filial da 402 Sul, onde tudo começou.
Atenho-me ao restaurante da Asbac, tomado pela atmosfera melancólica e saudosista do clube que teve seu heyday no final dos anos 1980. Apesar do estacionamento mal-iluminado com um quê de abandono, ao atravessar os corredores inóspitos da pista ao restaurante, uma grata surpresa está reservado aos comensais: garçons à moda antiga; o grande Santana a parear os vinhos da invejável adega, com rótulos de 25 países; e, claro, a presença marcante do senhor grisalho de bigodão e um gentil sorriso a recepcionar sua clientela e garantir o padrão dentro da cozinha.
Eis o dom de Francisco.
Dom Francisco
No clube da Asbac (Setor de Clubes Esportivos Sul, Trecho 2, Conjunto 31). Telefone: (61) 3326-3224. Das 12h à 0h. Sexta e sábado, até 1h; domingo, até 17h. Ambiente interno. Estacionamento gratuito com manobrista. Wi-Fi. Aberto em 1988