Café e um Chêro: comida afetiva se traduz em bolos e cuscuz deliciosos
A casa da 109 Norte mostra que é possível uma gastronomia familiar e profissional
atualizado
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Posto sobre o fogão, a cuscuzeira exala um aroma penetrante, porém sutil. Não assovia como chaleira, mas emite melodia própria, resultado da água em ebulição e do vapor que escapa pelas frestas da tampa. Essa qualidade sonora-olfativa surge como prenúncio do café da manhã sem pressa. O tilintar da louça, o cheiro do café e toda a alquimia das receitas típicas da primeira refeição do dia despertam sentidos profundos da memória afetiva – seja em casa ou na padaria; numa cafeteria ou no bufê do hotel.
Ovo, pão, fruta, suco, bebidas quentes, leite, queijo e… cuscuz. Eis a base do café da manhã tipicamente brasileiro. Naturalmente, os regionalismos impõem os hábitos de consumo. Em Manaus, o pão francês leva tucumã; em São Paulo, presunto, queijo e tomate; no Maranhão, carne de panela… Por essas bandas do DF, mistura-se mais tradições nordestinas e mineiras. Porém, são pouquíssimas as casas dedicadas a conceber pratos à altura do afeto. Por esta razão, o Café e um Chêro, na 109 Norte, se apresenta com um dos bons destinos para o desjejum no Plano Piloto.
Cuscuz nordestino agrega o que de melhor há nas técnicas africanas e indígenas (sobretudo do povo Guarani) para se conceber um prato a partir de farinha e água. O uso da fécula do milho foi uma sacada dos índios – afinal, a diversidade da produção agrícola dos povos originários é imensa, para além da mandioca, sempre tida como suprassumo da Terra Brasilis.De certo, tenho as feiras como predileção quando o assunto é café da manhã. Não há cuscuz como o da tapiocaria Real Sabor, na Feira do Produtor de Vicente Pires – mas este será um próximo capítulo da Coluna Prato Feito.
De volta ao Café e um Chêro. Para além do adorável nome, do filtro de barro e do atendimento cordial, encontramos aqui um bom exemplar do simples cuscuz. Falta-lhe um pouco de fofura, resultado de uma combinação entre a qualidade da farinha, a hidratação e o tempo de cozimento ainda não perfeitamente equilibrada. O sabor apresenta-se na medida correta. Servido fresco, quentinho e suficientemente umedecido, a receita pode vir acompanhada de manteiga (R$ 7), queijo (R$ 9), ovo (R$ 9) e uma saborosíssima carne de panela (R$ 15), preparada por Dona Alba Amaral, cozinheira e pedra fundamental do empreendimento familiar criado e gerido por seu filho, João Gabriel.
O empresário, aliás, fez o caminho inverso: deixou o ramo de hamburgueria e desgourmetizou-se para elaborar a casa sem grandes pretensões, mas com uma enorme conceito. Coisa que ainda falta em Brasília. Ancorado em receitas simples, elaboradas com rigor e consistência, João Gabriel e Dona Alba apresentam para além do cuscuz um pão francês invejável, fresquinho, servido também com o delicioso lagarto desfiado (R$ 13 ou R$ 25 no combo acrescido de suco de laranja com bolo de banana).
O mesmo pão, crocante e livre daquele amassado sem critério (ou propósito) da chapa, pode levar ovo e queijo (R$ 9) ou ser apenas tostado (R$ 4). A qualidade do ingrediente é fundamental. Também há um pão com linguiça de frango recomendado pela casa (R$ 12). A combinação com vinagrete e maionese não me agrada suficientemente. Pão com linguiça precisa de acidez. Talvez apenas o vinagrete ou um outro molho mais adstringente comporia melhor a receita.
Da lista de tapiocas, dispenso essas coisas com Nutella e recheio demasiado, mas sei que há público para isso. Acho mais interessante a básica de manteiga (R$ 6), um tiquinho ressecada aqui. Beijus também possuem ciência por trás. Requerem hidratação precisa do polvilho e cozimento em fogo médio ou baixo (a depender do fogão), resultando em massa entre crocante e macia.
Dentre os doces, há opções muito dignas, embora a cartola padeça de montagem pouco equilibrada, com excesso de queijo. Um pudim de leite de lata – daqueles da roça, para se virar no prato. Bem saboroso, com ótimo grau de dulçor e uma calda de caramelo no ponto correto (R$ 14). A técnica, contudo, prejudica a textura (algo esperado), embora mantenha boa parte da lisura ideal em seu interior. Os bolos de Dona Alba são um capítulo à parte. Há um de macaxeira com coco cremoso de lamber os beiços (R$ 7, qualquer opção).
Café e um Chêro, em essência, se identifica como uma cafeteria. Embora tenha apreço pela refeição diurna, os pratos podem ser requisitados ao longo do dia inteiro — inclusive para o almoço, cujo serviço anterior de refeições mais substanciais foi limado do cardápio. Sei que para a sobrevivência empresarial, muitas casas como esta aderem a uma babel de serviços aleatórios. Torço para que este não precise apelar para tanto e permaneça com a carta enxuta e o serviço rigoroso.
Contudo, falta ao local mais atenção justamente ao café. Impressiona logo a opção pela máquina de expresso La Marzocco, sempre um sinal de qualidade. Outra surpresa foi deparar-me com os grãos da Aha! Cafés, microtorrefadora que fornece para algumas das principais cafeterias da cidade. No entanto, extrair um bom expresso machiatto (R$ 9), meu pedido costumaz, exige um serviço de barista à altura, o que não há por aqui. O coado (R$ 5 pequeno) estava bom.
Sou muito desconfiado de lugares que dependem exclusivamente da insinuação de uma cozinha afetiva. Afeto sem profissionalismo funciona dentro de casa. O negócio de João Gabriel e Alba traduz bem o espírito da comida de origem caseira na função de comércio. Vida longa ao Café e um Chêro.
Café e um Chêro
Na 109 Norte, Bloco C, Loja 37. De segunda a sábado, das 8h às 21h. Ambiente externo. Wi-fi. Aberto em 2017.