Bodega de la Habana: conheça um pedacinho de Cuba em Brasília
Capitaneada pelo chef cubano Miguel Padilla, a casa tem a modesta pretensão de executar uma cozinha clássica da terra natal de seu dono
atualizado
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Na sociedade polarizada destes tempos, a gastronomia não passa ilesa do juízo de valor ancorado em estereótipos. Nunca fora poupada, aliás. A alimentação inspirou até os jargões mais contundentes do FlaxFlu social pós-impeachment ou pós-golpe, a depender da narrativa com a qual cada um mais se identificar. São coxinhas versus mortadelas. Conheço gente que parou de comer qualquer um desses por motivo de “coerência de discurso”. Nesse cenário irreconciliável, virou xingamento mandar alguém para Cuba.
Referir-se ao país socialista desperta paixões cegas, capazes de embaçar o olhar até mesmo para a riquíssima cultura da ilha caribenha. O que se come em Cuba? Se não quer ir para Havana descobrir, em Brasília há um dos raríssimos restaurantes dedicados a essa aparentemente exótica cozinha, alijada historicamente do comércio de alimentação da capital pelo predomínio da influência europeia até hoje na gastronomia brasiliense. Refiro-me à Bodega de la Habana, operando desde 2016 no Jardim Botânico e que em maio abriu uma segunda unidade na Vila Planalto, ponto onde funcionava o Jambu, tornado em Leo por pouquíssimo tempo até encerrar as atividades.
Capitaneada pelo chef cubano Miguel Padilla, a casa tem a modesta pretensão de executar uma cozinha clássica da terra natal de seu proprietário, com alguns pratos simbólicos e outros adaptados para a ideia de gastronomia internacional, praticada nas grandes redes hoteleiras instaladas em Havana, onde trabalhou após formar-se em meados dos anos 2000. Ao vir para cá, repetiu a história de outros tantos estrangeiros: se apaixonou por uma brasileira e por aqui ficou.
Em minha busca por encontrar a diversidade gastronômica no Distrito Federal, topei com um único restaurante cubano antes desse, há uns cinco anos. Ficava lá no centro de Taguatinga e chamava-se Laura, depois rebatizado de Sabor Habana. Era uma self-service um genérico, com um arroz moros y cristianos perdido por entre as cubas. Nada a fazer jus ao imenso repertório cubano.
Padilla coloca, portanto, a comida de Cuba no mapa do DF. Como faltava algum lugar que reproduzisse a tradição cubana por aqui, sobretudo num país onde encontra-se um clima muito similar e praticamente todos os ingredientes originais. Há muito pouco a ser adaptado. Dividimos com Cuba a mesma história de colonialismo europeu e escravocrata. Cuba assimilou, deste modo os mexidos de arroz inspirados pela culinária espanhola mais elementos da cozinha africana: banana-da-terra, inhame, feijão, arroz, cominho…
A Bodega de la Habana, contudo, apresenta-se com uma base sólida de restaurante. Não surge de uma iniciativa autônoma de um imigrante que pratica no ramo o chamado empreendedorismo de sobrevivência. Padilla traz um projeto bem desenhado a ilustrar muito bem a potência da comida regional. Nos salões, estão espalhados quadro de fotos de personalidades e pontos turísticos do país, além de uma bandeira cubana.
Na nova loja, Miguel aproveita toda a decoração e mobiliário deixada pelo chef Leandro Nunes quando fechou o Jambu. Foi um ótimo negócio, de compadres. Antes do Jambu, Padilla trabalhou como sous-chef de Leandro no Liv Lounge, à beira do Lago Paranoá, onde viria a assumir a cozinha.
Ficou para a Bodega de la Habana as paredes de tijolos aparentes coberto com grafites, nova onda dos restaurantes moderninhos de Brasília, algo que considero um tanto descabido, uma gourmetização do grafite, domesticado entre quatro paredes. É a morte da expressão urbana em nome do design de interiores. Uma melhor vista aparece ao olhar para o balcão de drinques, uma prateleira pequena apenas com runs, à meia-luz, como se aguardasse a turma da boemia, com charutos em riste.
Gostei muito aliás de como a carta é enxuta e dedicada a servir exclusivamente clássicos cubanos, embora Miguel tenha em mente ampliar a oferta para além dos daiquiris, mojitos e cuba libres. Preços modestos (entre R$ 8,50 e R$ 10,50), mas falta mais equilíbrio nas fórmulas. Daiquiri, por exemplo, é um drinque cujo limiar de álcool, dulçor e amargor se impõe como desafio a qualquer barman, mesmo experiente. Este não foi nem de longe dos melhores que tomei em Brasília. Necessário ajustar e qualificar a coquetelaria básica.
O menu, contudo é sólido em execução. De partida, a cesta de chicharritas (R$ 13,50) parece-me uma pedida obrigatória, ainda mais para compartilhar: chips super crocantes e sequinhos de banana-da-terra verde, inhame e batata doce com dips de abacate e de pimentão. Simples, honesto e tecnicamente perfeito.
Da lista de lanches, Miguel serve o cubano, sanduíche de pernil com pepino, mostarda e cebola, alçado à fama mundial pelo filme Chef, dirigido e estrelado por Jon Favreau. Gosto mais da hamburguesa, com um disco de carne moída suína misturada à maminha bovina, abraçada por um brioche saboroso.
A Bodega se sai muito bem nos pratos principais. Sem muita invencionice. Afinal, o que há de se criar de tão exótico para pratos tão pouco conhecidos por aqui, certo? Recorte de cardápio acertado, objetivo. O moros y cristianos (arroz com feijão preto, R$ 36,50) de Miguel, como a maior parte dos pratos, evidenciam o perfume do cominho, tempero essencial à cultura cubana. O prato serve de guarnição também ao se pedir o rabo encendido, uma ótima e tenra rabada desossada temperada com páprica e finalizada por uma geleia picante (uma pequena invenção para conferir dulçor ao prato).
Cubanos adoram misturar salgado com doce, na sobremesa inclusive. Veja o aporreado com fufu, um prato influenciado diretamente pela cultura africana. Fufu, originalmente, é um bolo ou uma massa de feita a partir de mandioca fermentada, cozida e pilada por horas. Mas a diversidade africana transcendeu esta única raiz e passou a produzir fufu com arroz, inhame, milho e, neste caso, banana. Parece mais um purê mais uma vez com a mão pesada do cominho. Serve de guarnição para o aporreado, um refogado de aparas de peixe com tomate, cebola e pimentão.
De influência europeia, Miguel apresenta em seu restaurante uma mariscada com arroz e frutas tropicais. Os diferentes tempos de cozimento de cada ingrediente aqui deixam a textura um tanto comprometida, muito homogênea, uma vez que não se preserva tão bem os pontos dos frutos do mar, por exemplo. Outro prato alçado da cozinha caseira aos hotéis de Havana foi o arroz ensopado com coxa e sobrecoxa, originalmente feito com frango e aqui servido com a pujança do pato.
A seção de sobremesas me agrada. Não há as bobajadas comerciais de chocolate (brownie, petit-gâteau) que muitos dos restaurantes ditos “étnicos) costumam colocar como concessão. Há um delicioso boniatillo (R$ 8,90), um doce de batata doce com leite de coco e raspa de laranja. A textura da guloseima se assemelharia a uma cocada brasileiras, mas miguel preferiu deixá-la mais cremosa, quase como um creme brûlée.
Ao final chegamos a uma experiência que une o exotismo de uma culinária pouco conhecida para nossa praça, mas amadurecida como um restaurante. Padilla mantém um padrão elegante e descolado que a cena gastronômica brasiliense exige, mas evita problematizar sua cultura de modo a desconstruir o debate político polarizado imposto. Seria a mesa o local de uma reconciliação? De sabores certamente sim.
Bodega de la Habana
No Jardim Botânico, Condomínio San Diego. Tel: (61) 3551-7158. E na Vila Planalto, Acampamento DFL, Rua 1. Tel: (61) 99964-1011. 12h às 16h e 19h à 0h. Fecha segunda. Domingo só almoço até 17h. Desde 2016.