Authoral busca a criatividade, mas é marcado pelo pudor
O menu é muito preso ao classicismo europeu, com algumas propostas de fuga do lugar-comum
atualizado
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Existe autoria na cozinha? Essa pergunta persegue cozinheiros de toda a estirpe desde sempre. O chef André Castro coloca essa questão como central no conceito do seu ainda novo restaurante Authoral, na 302 Sul. Embora não tenha dois anos de operação, a casa coleciona prêmios e se tornou um dos maiores hypes da gastronomia brasiliense. Até onde o gênio criativo do cozinheiro o levaria a ser considerado, de fato, autoral? No menu, há algumas pistas, como o fato de ser um restaurante gerido por um chef e não apenas um restauranteur, por exemplo.
Antes de seguir, um não tão breve parêntese: não há lei regulamentada de direitos autorias para receita como o há para a música. Os princípios éticos da autoria na gastronomia levam muito mais em consideração o fair play do que qualquer outra coisa. Afinal, até hoje se discute se o doce de leite foi criação argentina ou uruguaia (e há quem diga que foram os chilenos) e se moqueca é a baiana ou a capixaba (e a outra seira peixada).
Notórios casos de plágio de receitas ocuparam as mesas dos juizados mundo afora, na maior parte delas resultam em acordos e não necessariamente indenizações de largas somas. No Brasil não são raras as histórias, como o famoso caso do Recanto do Camarão (DF), que teria surrupiado o receituário da rede Coco Bambu (CE) e que, por sua vez, teria capturado os preparos do Camarões (RN). Em 2017, na edição nacional do reality show Masterchef, a vencedora Michele Crispim fora acusada de plágio pela chef Bel Coelho pela sobremesa com a qual levou a disputa.
Por outro lado, há questões na cozinha em que não se pode conferir propriedade a ninguém. Afinal, muitas das receitas vêm passadas pela oralidade, de geração a geração. Foi só no início do século 19 que as técnicas de cozinha profissionais se cristalizaram pelos escritos de Carême e, então, adentraram a era das grandes e aceleradas transformações industriais e culturais do século 20.
Portanto, ao se colocar no menu um créme brûlée, estaria o restaurante cometendo plágio? Claro que não. O que determinaria a licença de uso das receitas em “domínio público”? Nada. Ora, a gastronomia se coloca entre a arte e a artesania. O espírito criativo é logo ocupado pela reprodutibilidade técnica por força do destino comercial. E a autoria pode se revelar na ousadia, na pretensão.
Inegavelmente, esses atributos estão inerentes à proposta de André e seu Authoral. O “h”no meio, o visual despojado do salão, com grafites decorativos em parede de tijolos aparentes, sob uma insígnia discreta de tipografia suave, demonstram um apelo da casa à pós-modernidade.
Pelo menu é possível perceber que a escola do chef carioca, criado em Brasília, mas com carreira desenvolvida em Salvador e São Paulo, fundamenta-se na culinária clássica francesa e europeia, embora trafegue por ingredientes e elementos típicos do Brasil e do Oriente. É a tal da fusion, termo em desuso hoje de tão banalizado. A autoria é o conceito da vez.
Perceba o prato mais celebrado do restaurante: uma espécie de neoclássico brasiliense que tem se firmado dentre as tendências observadas neste mercado. Trata-se de um nhoque de banana-da-terra, finalizado na frigideira, a garantir uma camada amendoada de caramelização, sobre um molho italiano alla amatriciana (à base de tomate, guanciale e cebola) com tenros tentáculos de polvo.
A autoria aqui revela-se pelo uso da fruta tropical na massa originalmente de batatas combinado a um molho um tanto tradicional, mas que falta força, deve picância e se conforma na suavidade da combinação. O repertório de entradas também apresenta um gyoza feito basicamente à moda oriental, sem muitas surpresas; ou um croquete bem-feito de ossobuco na cerveja escura, nada de muito revelador.
Há uma eficiente construção de camadas de diferentes matizes que funciona muito bem: a brandade de bacalhau feita com uma espécie de chantili de wassabi e mandioquinha no lugar da batata, combinada com azeite de dendê. O uso de carboidratos complexos para obter um creme foi uma das grandes heranças portuguesas que inspiraram pratos históricos nacionais, a exemplo do vatapá. Esta receita me desperta alguns sentidos a mais, desvelados pelo paladar e pela memória.
Mais uma vez, falta picância e sobra hesitação. Obviamente não faz bem o estilo de André Castro, muito embora demonstre certa inclinação à culinária oriental, sobretudo a tailandesa. No entanto, perdemos muito no comércio brasiliense pelo mau hábito do comensal, avesso a condimentos e sabores muito exóticos. Mas, se é para bancar uma alusão ao sudeste asiático, as sutilezas não encontram muito espaço.
Pois há muito pudor ao apresentar a pescada thai, combinação de peixe branco cozido à perfeição com curry vermelho, lichia, legumes e arroz negro. Prato um tanto apático, sem as vibrações desejadas para as papilas gustativas. O pescado também se alia a uma combinação mais eurocêntrica, com molho de mexilhões, cuscuz de sêmola e prosecco, um prato de tons mais contemporâneos.
O peito de pato ao missô com tangerina e purê de mandioquinha, o shoulder steak com creme de couve-flor e a barriga de porco ao molho hossein com purê de cará formam uma sequência de pratos que repetem uma tendência das metrópoles ocidentais em unir a técnica francesa a elementos asiáticos. Algo que funciona bem e transgride de certo modo a epidemia do filé com risoto, o que é necessário em absoluto.
No entanto, há modinhas dispensáveis, descobertas das mais inoportunas para a gastronomia brasileira, como o insistente uso de farinha panko na farofa. Esse ingrediente integra o steak comentado acima. Fico muito surpreso toda vez que observo esse uso equivocado do imaginário da farofa, diante da riqueza de processos, produtos e sotaques de farinhas que temos aqui.
Nas sobremesas, os pudores do chef André Castro revelam-se de forma mais incisiva, o que é ruim neste caso apenas para o conceito ao qual se atém. Afinal, ele se apresenta um confeiteiro de mão cheia, muito técnico e com muito discernimento no equilíbrio da acidez, dulçor, amargor etc.. Provei quase todas. E todas são deliciosas. Nenhuma deles me leva a uma grande descoberta de novas paletas de sabores, mas revelam grande esmero.
Sobretudo a bavaroise de limão-siciliano com frutas amarelas: sorvete de manga mais calda de laranja e maracujá. Acidez no ponto, coisa rara de se encontrar. Do lado dos doces à base de chocolate, a torta com textura de mousse de chocolate leva um crumble também de cacau equilibrado com o amargor do caramelo em calda salpicado por flor de sal.
Fui arriscar em uma terceira visita o menu degustação oferecido, com parcas informações e uma burocracia enorme para se conseguir, apesar de previsto no cardápio. Custa R$ 195 por pessoa, com seis etapas. No entanto, não basta reservar. É necessário mais de 24 horas de antecedência para que o chef possa agregar outros elementos. Para se confirmar a reserva, você praticamente precisa conceder uma entrevista ao chef – só a ele e ninguém mais.
Ora, há muitas limitações para a tal experiência que, após duas horas de refeição, não se mostra muito mais eloquente em relação ao próprio à la carte. Importante se repensar a eficiência desse modelo.
Evidentemente, no Authoral esperava um cardápio que conduzisse a experiência a este espírito criativo, fomentado pela ousadia e pela transgressão. À mesa, o que encontro é um menu muito preso ao classicismo europeu, com algumas propostas de fuga do lugar-comum.
Authoral
Na 302/303 Sul, Bloco A, Loja 10. Tel: (61) 3225-0052. De 12h às 16h e 19h às 23h30. Domingo 12h30 às 17h. Ambiente interno. Wi-fi. Desde 2016