Sobre as (des)confianças de quem cruza o Atlântico rumo a Portugal
Mudar para terras lusas significa mudar também os paradigmas dos brasileiros, habituados a olhar com desconfiança para tudo e todos
atualizado
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Nós, brasileiros, aprendemos desde pequenos a não confiar. Com razão ou sem razão, é um sentimento e, por consequência, uma atitude que nos acompanha por toda a vida. Desde o “não aceite balas de estranhos”, “aprendemos” que o outro quer nos trapacear, nos enganar e se aproveitar de nós e de nosso dinheiro.
Não confiamos nos políticos que nós mesmos elegemos. Não confiamos nos mecânicos de automóveis, nos eletricistas e encanadores, porque estarão sempre tentando inventar defeitos que não existem ou cobrar mais caro do que o serviço deveria custar. A vendedora da loja insiste para você levar aquela blusinha horrorosa que está na promoção e que “caiu tão bem em você”, apesar de ser dois números a menos do que você veste. Ela precisa ganhar a comissão para sobreviver.
Assim como o camelô e o artesão da praça precisam sustentar a família. Você pede um desconto e eles dão. A-ha! É a confirmação de que estavam enganando você e ganhando um dinheiro nas suas costas! É a cultura do vale tudo e da Lei de Gérson. (Pobre Gérson, grande craque de futebol dos anos 60-70 que, injustamente, teve seu nome associado ao “jeitinho brasileiro” por protagonizar uma propaganda de cigarro, com o seguinte texto: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”)
Mudar para Portugal significa mudar também os nossos paradigmas. É natural que, ao chegar a um país estranho, aumentemos ainda mais o nosso grau de desconfiança. Mas, aos poucos, vamos percebendo que ninguém está querendo nos passar a perna. Aprendemos aqui a confiar, antes de desconfiar.
Quando um corretor de imóveis diz que é melhor fazer uma oferta rápida, porque há outros interessados, não é “papo de corretor”. É verdade, e já vi brasileiros deixando de fazer um bom negócio porque não acreditaram. Você ficará surpreso com a vendedora portuguesa da loja dizendo que aquela roupa em oferta não ficou boa e que na loja vizinha talvez você encontre uma melhor.
Não tem pegadinha, não tem letras miúdas, não tem o “com nota ou sem nota?”, não tem aquela graninha para o guarda liberar a multa. Não existe o parcelamento em 10 vezes sem juros no cartão que esconde um preço majorado do produto. As pessoas pagam no cartão à vista. Ninguém fura a fila porque até nos lugares mais simples é preciso retirar uma senha. Como se diz, o reto é reto e não faz curva
Essa clareza, transparência e honestidade aos poucos vão nos contaminando e começamos a ter a confiança como princípio, e não o contrário.
Você já reparou nas pessoas digitando a senha do cartão em um caixa eletrônico ou na máquina de cartão de crédito no Brasil? Cobrem com a mão, colocam o corpo à frente, olham para os lados como se estivessem fazendo algo proibido. E o pobre do atendente que vira o rosto para você ter a certeza de que ele não está magicamente capturando seus dados…
Em Portugal, como já disse em outra coluna, você tem uma senha de quatro dígitos e pronto. Paga a conta do restaurante, saca dinheiro e faz pagamentos nos caixas eletrônicos, os chamados Multibanco, no meio da rua. Detalhe: no lixinho ao lado do caixa eletrônico dezenas de extratos com o número da conta e saldos dos correntistas.
É uma arte mesmo se equilibrar entre a desconfiança, a fraude e a desonestidade. Afinal temos bons motivos para isso. Se numa eleição para presidente do Senado com apenas 81 votantes aparecem 82 votos, alguma coisa está errada. Gostaria mesmo de acreditar que isso se deve à nossa evolução tecnológica que aboliu o voto em cédula e, portanto, não nos acostumamos com essa primitiva votação manual. Mas desconfio que não é bem isso (olha a desconfiança de novo!).