Lágrimas portuguesas não apagaram as chamas do Museu Nacional
Reação em Portugal é de profunda tristeza, pois incêndio queimou parte da história dos dois países
atualizado
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A dor, quando estamos distantes, parece maior. Nunca tinha pensado nisso antes. A ideia de que a distância amortece os sentidos não é verdadeira. A distância gera na verdade uma sensação de impotência, como se não pudéssemos fazer nada pelo ocorrido. Digo isso a propósito da tragédia que destruiu o Museu Nacional, no Brasil. Muito já se escreveu sobre o incêndio, sob diferentes vieses e pontos de vista. Em comum, a inevitável metáfora de um país derretendo. Porém um dos textos mais interessantes que li sobre o tema veio exatamente de um dos maiores escritores portugueses contemporâneos e que possui fortes laços com o Brasil. Trata-se de Valter Hugo Mãe, que postou em sua página do Facebook, assim mesmo, tudo em minúsculas como é o estilo dos textos dele:
“acordo com a insuportável notícia da destruição do magnífico museu nacional do brasil, que é da ordem do absurdo. como pode ser descurada uma casa daquelas? uma casa que definia o brasil, definia a história do brasil. o museu nacional do brasil não pode arder. só em tempo de guerra, no grotesco que a guerra pode ser, coisas assim acontecem. fico com a impressão de que o brasil está em guerra consigo mesmo. meu abraço solidário a todos os que prestigiam o brasil e a sua cultura, e a todas as gerações futuras que se vêem impedidas de aceder ao melhor do seu próprio património e tanta da sua memória. estou horrorizado”
E, de fato, a repercussão em Portugal foi gigantesca, graças às fortes ligações que o Museu tinha/tem em relação à história dos dois países. Era um pedacinho da história de Portugal que se perdeu. Era o palácio onde se instalou Dom João VI, quando levou a corte ao Brasil há mais de 200 anos, fugindo das invasões francesas, antes mesmo de ser museu. E a própria criação de um Museu Nacional do Brasil também foi obra dele. Diários da Imperatriz Leopoldina, móveis de Dom João VI, o trono do reino de Daomé, dado em 1811 ao príncipe regente Dom João e inúmeras obras, objetos e documentos compilados pela Família Real se perderam para sempre.
A reação dos portugueses difere um pouco da dos brasileiros, que tem o tom da revolta, aguçada pelo embate eleitoral. A reação aqui é simplesmente de profunda tristeza. O próprio Presidente da República, o “popstar” Marcelo Rebelo de Sousa, manifestou seu pesar aos brasileiros, lembrando que quatro monarcas portugueses moraram no Paço de São Cristóvão; além de Dom João VI, a mãe dele, Dona Maria I; o filho, nosso Dom Pedro I, que depois virou aqui Dom Pedro IV; e Dona Maria II, filha de Dom Pedro. Incrivelmente, recordam-se também do incêndio no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que para os nossos patrícios também tinha um valor especial. E que nós tão rapidamente esquecemos.
Quando lembram da História do Brasil vinculada à História de Portugal, brasileiros normalmente falam da exploração que os portugueses fizeram no Brasil, “roubando” as nossas riquezas, como o nosso ouro que adorna as igrejas de Portugal. Infelizmente era assim que ensinavam os livros de História em que estudei, ainda da época da Ditadura Militar no Brasil. Já ouvi de brasileiros mais de uma vez que os culpados pelo nosso atraso são os portugueses. Como se duzentos anos depois da Independência ainda não tivéssemos conseguido nos libertar…
Um outro português amigo meu comparou o incêndio do Museu Nacional com os incêndios que atingiram várias áreas de Portugal no verão do ano passado. “Em Portugal morreram dezenas de pessoas e isso nunca mais sairá de nossas memórias. No Brasil, simplesmente queimaram-se as memórias…”.
Retomando as palavras do Valter Hugo Mãe, na guerra que o Brasil trava consigo mesmo, não haverá vencedor.