Reality shows de culinária propagam a figura (patética) do chef tirano
Criou-se um mito no mundo culinário: o do chef temperamental, que na perseguição pela comida perfeita trata os subordinados a gritos e patadas. Há até quem faça do estilo um marketing. Gordom Ramsey é, provavelmente, a versão mais famosa desse tirano. No comando da competição culinária “Hell’s Kitchen”, o britânico encarna de forma histriônica o papel. […]
Rosualdo Rodrigues
atualizado
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Criou-se um mito no mundo culinário: o do chef temperamental, que na perseguição pela comida perfeita trata os subordinados a gritos e patadas. Há até quem faça do estilo um marketing. Gordom Ramsey é, provavelmente, a versão mais famosa desse tirano. No comando da competição culinária “Hell’s Kitchen”, o britânico encarna de forma histriônica o papel. Xinga e humilha os candidatos, berra, esperneia e joga no lixo a comida que não esteja de seu agrado.
Outro reality show gastronômico comandado por ele, o “MasterChef”, se espalhou em muitas versões pelo mundo e, junto com o formato, popularizou o tipo ranzinza, que adora parecer o diabo para os trêmulos candidatos do programa. No Brasil, Érick Jacquin e Henrique Fogaça disputam para ver quem faz a cara mais feia e fica com a função — enquanto a simpática Paola Carosella faz a linha “há que ser duro, sem perder a ternura jamais”.
A figura do chef carrasco com certeza não é nova na história da gastronomia, mas não há nada mais patético do que esse tipo. Qualquer fome desaparece quando assistimos ao estressante “Hell’s Kitchen” — e o estresse não vem da competição em si, mas da histeria do chef — ou o mais recente “O Mundo de Jacquin”, em que o jurado do “MasterChef Brasil” tem o espaço todinho só para exibir seu mau-humor, impaciência e falta de habilidade para ser gentil com os outros.
Se a comida em si traz a energia de quem a prepara, não deve ser nada saudável a que vem de uma cozinha onde os responsáveis por fazê-la são movidos a destratos e humilhações, onde o trabalho é conduzido pela arrogância. Comer é um dos maiores prazeres da vida e, por isso mesmo, é difícil compreender por que esse prazer teria que estar associado a cenas tão deprimentes.
É verdade que o ambiente de uma cozinha não é dos mais amenos para quem trabalha — tem o calor, a corrida contra o relógio, a pressão para não cometer erros… Em meio a tudo isso, a tirania do chef pode até ser inevitável na vida real — embora a estupidez nunca seja aceitável na relação entre chefes e subordinados, tanto faz se numa cozinha industrial, num escritório, numa fábrica ou onde quer que seja.
No entanto, utilizado como matéria-prima para os reality shows, esse jogo de dominação soa apenas como um espetáculo desnecessário, uma encenação tola, um desserviço à gastronomia. Infelizmente, é provável que venha exatamente daí o sucesso das competições culinárias atualmente exibidas pela televisão. Afinal, o que a maioria quer é ver o circo pegar fogo — e neste caso é nisso que a cozinha se transforma, num circo.